sexta-feira, 13 de abril de 2012

PESQUISAS COM A MACONHA NO BRASIL

Fazer um levantamento das pesquisas sobre a maconha realizadas no Brasil, ao longo do tempo, é tarefa difícil principalmente porque até meados das décadas de 50 e 60 as revistas científicas brasileiras tinham vida efêmera, não eram catalogadas e muitas já não são encontradas nas bibliotecas.

Em levantamento incompleto, o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) catalogou um total de 470 artigos de brasileiros sobre maconha publicados nos séculos XX e XXI, sendo apenas 39 deles até o ano de 1955, os dois primeiros de 1934 por J. Lucena, respectivamente nos Arquivos da Assistência aos Psicopatas de Pernambuco e na Revista Médica de Pernambuco. Este autor e seus colegas foram provavelmente os mais profícuos pesquisadores do tema naquele período, dando a Pernambuco o merecido destaque, descrevendo os sintomas apresentados pelos usuários da maconha (títulos dos trabalhos: "Maconhismo e alucinações"; Os fumadores de maconha em Pernambuco"; "Maconhismo crônico e psicoses"; "Alguns dados sobre fumadores de maconha" etc.) publicados naquelas revistas e também na Revista Neurobiologia. Foi nesta época, de 1930 a 1940, que a repressão ao uso da maconha ganhou força no Brasil, com a publicação de artigos por vários autores brasileiros também com títulos alarmantes ("Os males da maconha"; "Maconha – ópio do Brasil"; "Os perigos sociais da maconha"; "As toxicomanias"; "Intoxicados pela maconha em Porto Alegre"; "O vício da Liamba no Estado do Pará – uma toxicose que ressurge entre nós" etc.).Iniciava-se também as ações policiais contra cultivadores e usuários da maconha, apoiadas no Decreto Lei Federal nº 891 em 25/11/19381.

Em 1956, o Ministério da Saúde, por meio do Serviço Nacional de Educação Sanitária e da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, organizou o que possivelmente foi a primeira reunião nacional sobre a maconha, publicando um alentado Anais a respeito2. Vinte e oito artigos estão presentes nesta publicação. Todos descrevem e comentam efeitos da maconha em usuários, sem maiores detalhes de metodologia ou resultados de pesquisa experimental. Os autores, de vários Estados do país, revelam até pelos títulos de suas contribuições uma postura mundial comum àquele período: condenação pura e simples da maconha como se fosse uma droga diabólica ("Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício"; "Sobre o vício da maconha"; Vício da diamba"; "O cânhamo ou diamba e seu poder intoxicante"; "Os perigos sociais da maconha"; "Aspectos do maconhismo em Sergipe"; "Diambismo ou maconhismo: vício assassino"; "A ação tóxica da maconha produzida no Brasil"; "Estudo dos distúrbios nervosos produzidos pela maconha", entre outros).

A partir da década de 60, a situação começou a modificar-se com os estudos pioneiros de José Ribeiro do Valle na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Este procurou, por meio de experimentação animal, quantificar os efeitos de extratos da planta e contou com a colaboração da S. Agurell, da Suécia, e B. Holmastdt, da Suíça.

Valle ao mesmo tempo acolheu vários jovens brasileiros que passaram a se interessar pelo estudo da planta. Nascia assim o principal e duradouro grupo de pesquisa sobre a maconha, que tem continuidade até o presente graças aos "filhos, netos e bisnetos" de Valle. Eu tive a honra de ser um dos "filhos", gestado no Departamento de Farmacologia e Bioquímica da Escola Paulista de Medicina. Estimulado pelo meu "pai científico", estagiei por quatro anos nos Estados Unidos para aprender "técnicas de psicologia experimental", seguindo a sua orientação. Fundou-se então o Setor de Psicofarmacologia e, em seguida, o Departamento de Psicobiologia, em 1973, que passei a dirigir, concentrando as atividades em pesquisas com animais e alguns trabalhos clínicos experimentais com voluntários não-usuários de maconha. Durante os próximos 30 anos foram publicados 57 trabalhos, 42 dos quais em revistas internacionais como Psychopharmacology; European Journal Pharmacology; Journal of Pharmacy and Pharmacology; Pharmacology; Biochemistry and Behavior; British Journal of Pharmacology; entre outras. Trabalhando em colaboração com grupos de química de Israel (R. Mechoulam) e da Alemanha (F. Korte), demonstramos então em animais que extratos de maconha, Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9-THC), canabidiol e vários outros fitocanabinoides induziam tolerância que não era cruzada com LSD-25 e mescalina; que o estresse ambiental potencializava certos efeitos da maconha e que tinham marcante efeito hipnótico e anticonvulsivante. Foi também demonstrado que o teor de Δ9-THC não explicava todos os efeitos da planta dada uma ação moduladora do canabidiol sobre o Δ9-THC. Estes trabalhos trouxeram amplo reconhecimento internacional ao Departamento de Psicobiologia, a ponto de recebermos naquela época em estágio ou ano sabático vários cientistas de países como Uruguai (J. Monti), Argentina (I. Izquierdo), Grécia (H. Savaki) e Estados Unidos da América (R. Musty, P. Consroe).

Ao mesmo tempo, vários jovens brasileiros fizeram estágios ou pós-graduação no Departamento de Psicobiologia. Entre estes "netos do Valle": A. W. Zuardi, R. Takahashi e I. Karniol, que retornaram aos seus locais de origem e estabeleceram produtivos grupos de pesquisa, notadamente no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto.

Em 1984 foram publicados os dois últimos trabalhos, de revisão, do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP3,4, sendo que um deles4 permaneceu como um dos dez mais acessados (hotest papers) da revista Toxicon.

Os "netos do Valle", principalmente A. W. Zuardi, continuam até o presente as pesquisas com canabinoides, notadamente o canabidiol. Tanto assim é que em uma recente revisão5 são citados vários trabalhos do grupo de Ribeirão Preto demonstrando que este princípio ativo da Cannabis sativa L possui atividade ansiolítica, antipsicótica e efeitos sobre doenças motoras.

Na realidade, o grupo de Ribeirão Preto liberado por Zuardi e contando com alguns de seus ex-estagiários ("os bisnetos do Valle"), em suas respectivas universidades de origem, apresenta-se hoje como o mais importante grupo de pesquisa em canabinoides do Brasil. Conforme mencionado, em quase duas dezenas de trabalhos publicados5 focando a atenção no canabidiol, os autores estudaram seus possíveis efeitos terapêuticos na esquizofrenia, ansiedade, epilepsia e desordens motoras como moléstia de Parkinson. Por outro lado, com as recentes descobertas de um sistema canabinoide completo no cérebro de mamíferos, inclusive o humano, pode-se antever que "os netos e bisnetos do Valle" continuarão a contribuir com importantes pesquisas sobre este tema.



Elisaldo A. Carlini

Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas 
(CEBRID), Departamento de Psicobiologia, Universidade 
Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil






Referências

1. Carlini EA. A história da maconha no Brasil. J Bras Psiquiatr. 2006;55:314-7. [ Links ]

2. Ministério da Saúde. Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros. Serviço Nacional de Educação Sanitária Brasília (DF): Imprensa Nacional; 1958. [ Links ]

3. Carlini EA. Riscos e promessas da cannabis. Scientific American Brasil. 2004;69-75. [citado 19 Dez 2009]. Disponível em: http://www.sciam.com.br. [ Links ]

4. Carlini EA. The good and bad effects of (-) trans-delta 9 – tetrahydrocannabinol (Delta 9-THC) on humans.Toxicon. 2004;44(4):461-7. [ Links ]

5. Zuardi AW. Cannabidiol: from an inactive cannabinoid to a drug with wide spectrum of action. Rev Bras Psiquiatr. 2008;30(3):271-80. [ Links ]

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