Vídeo causou revolta não por apresentar uma mulher negra condenando blackface, mas por ameaçar privilégios históricos
No dia 8 de fevereiro, a Netflix divulgou um pequeno teaser sobre sua nova produção original, a série Dear White People.
Apenas 35 segundos foram suficientes para provocar uma expressiva
movimentação de pessoas - brancas - ofendidas com o conteúdo do vídeo.
Algumas delas chegaram a anunciar em redes sociais o cancelamento do
serviço de streaming. Pois bem: o que tinha de tão incômodo no vídeo?
Uma jovem negra, aparentemente locutora de rádio, enumerando uma série
de fantasias de Halloween consideradas aceitáveis para pessoas brancas,
como de pirata, enfermeira, ou “qualquer um dos primeiros 43 presidentes
americanos”. Em seguida, ao classificar o topo da lista de fantasias
inaceitáveis, ela diz apenas “eu“. O fim da frase é seguido por várias
imagens de homens e mulheres brancos fazendo blackface, nome usado
quando alguém branco pinta o rosto para se fantasiar de uma pessoa
negra.
Contextualizando: a série é uma adaptação do filme Cara Gente Branca, premiado em 2014 no Festival de Sundance.
A história gira em torno de um grupo de alunos negros de uma
universidade onde a maioria dos estudantes são brancos. Após os brancos
decidirem que não há problema em debochar de negros em fantasias de
Halloween, os alunos negros se revoltam com a situação.
Na internet, pessoas começaram a subir hashtags como
#NoNetflix e #BoycottNetflix. Para quem acompanha regularmente as
principais polêmicas online, esta segunda é bastante familiar: a última
vez que vimos uma hashtag semelhante foi quando Beyoncé lançou o extremamente político Lemonade e se apresentou no SuperBowl
acompanhada de dançarinas vestidas com os icônicos uniformes dos
Panteras Negras, grupo que lutava por igualdade racial nos EUA. A
hashtag boycott foi então usada para tentar silenciar um protesto
artístico que sinalizava o genocídio da população negra norte-americana e
as ações violentas de policiais contra essas pessoas.
O público que defende bandeiras como #NoNetflix certamente
não percebeu até agora que usar suas produções para horizontalizar a
representatividade na indústria do entretenimento não é novidade na
empresa. A própria Marvel se mostrou uma parceira
valiosa nessa missão, curiosamente. Depois de arrancar elogios de
público e crítica com a saga de um herói cego (Demolidor) e de apresentar uma heroína vítima de um relacionamento abusivo (Jessica Jones), a parceria Marvel-Netflix brindou o público com a história de Luke Cage,
um homem negro que ganha os poderes após ser alvo da truculência
policial dentro de um presídio - onde cumpria pena por um crime que não
havia cometido.
Se essa premissa não lhe remete a absolutamente nada, talvez você esteja por fora de uma das maiores coisas já feitas na Netflix até o momento - e que, não por menos, garantiu ao serviço de streaming um lugar entre os indicados ao Oscar. O documentário A 13ª Emenda
concorre na premiação deste ano apresentando um diagnóstico da
superpopulação carcerária dos EUA, relacionando uma brecha na cláusula
do fim da escravidão ao número absurdamente elevado e desproporcional de
negros atrás das grades hoje por lá. O documentário enumera de forma
brilhante o que cada governante norte-americano fez - ou deixou de fazer
- para que a situação chegasse ao ponto atual, passando pela
divulgação dos recorrentes casos de violência policial contra a
população negra noticiados recentemente.
E, novamente, não é a primeira vez que o serviço de
streaming usa suas produções para fazer críticas à situação da população
negra. Em Orange is the New Black,
a morte de Poussey, esmagada por um despreparado policial branco, não
foi aleatória. Quando a personagem fala diversas vezes que não consegue
respirar, é impossível não lembrar do caso real de Eric Garner,
homem negro, obeso e asmático morto exatamente da mesma forma por
policiais. O crime aconteceu no dia 17 de julho de 2014, em Staten
Island, Nova York, quando um oficial da New York City Police Department
(NYPD) estrangulou o homem e o vídeo da ação foi parar na internet. Samira Wiley, que interpretava Poussey, deu uma declaração inspiradora sobre a cena da personagem. “É
uma morte absurda, mas não foi uma decisão descuidada por parte da
série. Ela ecoa muitas mortes que aconteceram no ano passado como Eric
Garner, Mike Brown. Eu quero que as pessoas fiquem chateadas, mas quero
que elas fiquem chateadas pelo fato de isso acontecer na vida real”.
Além de denúncias, outra bandeira que a Netflix vem trabalhando é a da representatividade. No universo de Luke Cage,
vemos um elenco majoritariamente negro nos mais variados papéis, desde
mocinhas que arrasam no basquete até vereadoras corruptas. A série The Get Down,
outra produção excepcional, é ambientada no Bronx dos anos 1970 e expõe
de forma nua e crua o contexto do surgimento daquilo que hoje
conhecemos como cultura hip hop. Uma das comédias mais elogiadas do
serviço de streaming nos últimos tempos é Chewing Gum,
que faz humor de forma impecável sem deixar de pontuar os problemas
enfrentados por mulheres negras da periferia de Londres. Além dessas, é
impossível não lembrar que existe um arco inteiro em Sense8 ambientado em Nairobi, a ótima Vaneza Oliveira sendo a melhor personagem da brasileira 3%, e Titus, o negro gordo e afeminado que tomou a comédia Unbreakable Kimmy Schmidt para si - estrelando sozinho inclusive o último teaser da série fantasiado de, adivinhem só, a Beyoncé do Lemonade que citamos lá no começo.
É desconfortável para um mundo que há apenas um século aplaudiu O Nascimento de Uma Nação,
filme que retratava negros como animais e glorificava a Klu Klux Klan,
sentar em frente ao sofá e ver que os dois primeiros - e únicos -
brancos dos primeiros episódios de Luke Cage são as pessoas de moral duvidosa da série. O teaser de Dear White People
ofendeu por colocar uma mulher negra dizendo que não deveria ser
aceitável que brancos ridicularizem negros. Muita gente branca ainda não
está preparada para ouvir alguém negro colocando o ponto de vista dele
para enumerar o que alguém pode ou não fazer - eis o racismo
subconsciente.
Netflix announced a new anti-white show (Dear White People) that promotes white genocide.— Baked🥛Alaska™ (@bakedalaska) 8 de fevereiro de 2017
I cancelled my account, do the same. #NoNetflix pic.twitter.com/2HIGqviLHj
"Netflix anunciou um novo programa anti-brancos (Dear White People) que promove o genocídio branco. Eu cancelei minha conta, faça o mesmo. #NoNetflix"
O vídeo de 35 segundos de Dear White People já passa de 4 milhões de visualizações, sendo que mais de 390 mil usuários deram dislike no post do YouTube em protesto. Justin Simien, diretor do filme e roteirista da adaptação, foi certeiro ao se posicionar quanto à polêmica em suas redes sociais. “A
igualdade é sentida como opressão pelos privilegiados e, portanto, três
palavras benignas os colocam em uma luta por sua própria existência,
mas eles não estão em perigo real. Qual é o meu papel como artista?
Criar Histórias. Histórias nos ensinam empatia. Nos colocam nas peles de
outras pessoas. Então conte sua história. Saia do armário. Escreva sua
tese. Diga a verdade inconveniente”, disse. No fim das contas, o boicote de Dear White People ironicamente só reforça a tese de Simien por trás da necessidade de produções do tipo. Em tempo: a série estreia dia 28 de abril.
Por Rafael Gonzaga - Artigo original publicado @ https://omelete.uol.com.br/series-tv/artigo/dear-white-people