Estamos fazendo referência ao ciclo de lendas que envolve a assim chamada “Rainha de Sabá”, que tem expressões em várias culturas da região do Mediterrâneo oriental antigo, entre judeus, árabes/muçulmanos, cristãos e etíopes, narrativa que possui também versões por escrito em cada uma dessas culturas. No contexto de divulgação do patrimônio cultural e civilizacional africano ensejado pela promulgação da Lei 10.639, temos realizado um trabalho de pesquisa focado especificamente na sociedade africana que agregou à sua herança cultural a lenda da Rainha de Sabá: a sociedade etíope. Nosso estudo é centrado em uma fonte literária etíope chamada Kebra Nagast.
Como resume Mario Curtis Giordani, “a história da Etiópia apresenta algumas características próprias que a diferenciam da história de outros povos africanos: documentação escrita, influência de uma tradição lendária, situação geográfica especial”. Um dos primeiros Estados a adotar o cristianismo como religião oficial na História, dentre os mais longevos que existiram, e única nação africana a não ser colonizada por europeus. A escolha em se trabalhar com a Etiópia não consiste em menosprezar as manifestações religiosas e culturais tradicionais atribuídas à África, mas, ao invés disso, de um esforço em trazer à tona a – para muitos surpreendente – diversidade do continente.
Temos assim o Kebra Nagast, termo que em Geês, idioma litúrgico da Etiópia no qual foi escrito, significa “Glória dos Reis”, obra que faz parte de um imenso corpus literário etíope. A importância do Kebra Nagast, diante da profusão de outras obras, a maioria sequer traduzida para outros idiomas, advém do fato de ele constituir muito mais que um simples texto literário, mas sim – assim como a Torá para os judeus e o Corão para os muçulmanos – aquilo que Edward Ullendorff chama de “repositório dos sentimentos religiosos e nacionais etíopes”. Trata-se de uma crônica pretensamente histórica dos reis etíopes, remontando sua origem à lenda de Sabá. A própria narrativa central, a alma e motivo condutor do Kebra Nagast é o ciclo da rainha de Sabá e sua visita à Salomão, baseado no relato bíblico encontrado em 1 Reis 10, versículos 1 a 13 e 2 Crônicas 9, versículos 1 a 12. De acordo com tais passagens, a rainha de Sabá, cuja aparição no relato bíblico não é precedida de qualquer explicação, tomou conhecimento da impressionante sabedoria do rei Salomão, de Israel, e empreendeu uma longa viagem a fim de conhecê-lo e colocar à prova tal sabedoria, portando uma quantidade enorme de presentes. Uma vez em Israel,
O relato encerra com uma generosa troca de presentes entre os monarcas e a volta da rainha de Sabá para seu reino. Esse é apenas o núcleo da lenda de Sabá que, como dissemos, povoa o imaginário de diversos povos antigos . Entre os próprios judeus, por exemplo, sabemos que circulavam mais informações a seu respeito, uma vez que o historiador judeu-romano Flávio Josefo, no primeiro século de nossa era comum, registrou no Livro Oitavo de suas Antiguidades Judaicas mais detalhes sobre a visita, como o nome atribuído pelos judeus à rainha, não citado na Bíblia, que seria Nicolis, e o fato de seu reino ser a Etiópia e o Egito, não Sabá.
De que modo a Etiópia incorporou esse mito? O Kebra Nagast retoma a narrativa da Bíblia e a expande, acrescentando informações que aquele relato não faz referência. De fato, muito embora a discussão historiográfica seja grande em torno da localização de Sabá, que poderia se localizar tanto na costa iemenita do Mar Vermelho – sendo a rainha árabe, portanto – quanto na costa africana, isto é na Etiópia, o Kebra Nagast toma como ponto de partida pacífico a rainha de Sabá como etíope. De fato, a proposta do Kebra Nagast é contar a origem da dinastia que governava a Etiópia à época de sua escrita e legitimar o seu poder. Assim, partindo do relato bíblico, podemos dizer que o Kebra Nagast o aprofunda: de acordo com ele, a rainha etíope – chamada Makeda – tomou conhecimento, através de agentes comerciais, da sabedoria de Salomão e empreendeu uma viagem nos mesmos moldes da que a Bíblia relata. A diferença começa quando a rainha se propõe a partir, pois, além de a rainha se converter à fé israelita, o rei Salomão traça um plano para tomá-la como esposa, e de fato, recorrendo a um estratagema, consegue fazer com que a rainha virgem se deite com ele. O Kebra Nagast diz que após isso, o rei tem um sonho profético, em que “apareceu em seu sonho um sol brilhante, e ele desceu dos céus e espalhou grande esplendor sobre Israel. E quando havia terminado, ele voou a Etiópia e brilhou com grande luminosidade para sempre, pois ele desejava morar lá.” A rainha Makeda retorna a seu reino esperando um filho do rei Salomão. Esse filho, chamado Menelik, ao tornar-se adulto, refaz o caminho da mãe, visitando também o pai, que por sua vez insta com ele para que assuma o trono de Israel. Como Menelik recusa, Salomão ordena que ele seja feito rei da Etiópia, quebrando a tradição de governantes mulheres, e para tanto envia primogênitos dos nobres de Israel como corte para o reino gêmeo que Israel passará a ter então. Os jovens enviados, inconformados com a incumbência que é na prática um exílio, arquitetam um plano em que entra em cena o objeto que é o tema central do Kebra Nagast: a Arca da Aliança, chamada no texto de Zion (Sião). O plano é roubar do templo de Jerusalém e levar consigo para a Etiópia o signo-mor do favor e da presença de Deus na terra. De fato, a Arca do Pacto é o objeto-símbolo central do Kebra Nagast, corporificando a transferência do favor de Deus dos judeus aos etíopes (prefigurada no sonho de Salomão), sendo a garantia da legitimidade da dinastia de reis descendentes de Salomão, com uma descrição totalmente baseada no relato da Bíblia. A Etiópia seria governada, portanto, de acordo com o relato do Kebra Nagast, por uma dinastia de reis, iniciada com Menelik, descendentes do rei Salomão, e seria a nação fiel depositária do objeto mais sagrado que já existiu. Ao mesmo tempo, Israel perdera o favor de Deus, como é relatado no próprio Kebra Nagast:
"Portanto, quando os judeus O virem, eles serão envergonhados, e serão condenados ao fogo duradouro. Mas nós que acreditamos, seremos colocados no trono e regozijaremos (...). Depois que os judeus crucificaram o Salvador do mundo, eles foram espalhados, e seu reino foi destruído e foram subjugados para sempre."
Qualquer estranhamento em relação aos possíveis anacronismos (como a referência à crucificação de Cristo enquanto motivo para a transferência da Arca do Pacto de Jerusalém para Aksum, a capital religiosa etíope) do Kebra Nagast é dissipado quando se leva em conta que, conforme Ullendorff ressalta, “os componentes principais da sua história tiveram um período muito longo de gestação na Etiópia e em outros lugares, e possuem todos os elementos de uma confluência gigantesca de ciclos legendários”. Ou seja, o Kebra Nagast constitui um exemplo de fonte literária resultante do assentamento por escrito de uma tradição repassada oralmente por um longo tempo, no qual sofreu as mais diversas influências, mas fruto principalmente da ação de três elementos: memória, oralidade e tradição, estando constantemente aberto, portanto, à renovação e inovação. Por isso, Jean-Pierre Vernant afirma que “quando o mitólogo especialista em Antiguidade encontra uma lenda já fossilizada em textos literários ou eruditos (...), se quiser decifrá-la corretamente terá que alargar sua pesquisa, passo a passo”, uma vez que “o que interessa ao historiador (...) é o pano de fundo intelectual evidenciado pelo fio da narração, o quadro em que está tecido.” Assim, para compreender a representação que fazem os etíopes de si mesmos no Kebra Nagast, de povo escolhido em substituição aos rejeitados israelitas, é imprescindível a ampliação do campo de pesquisa; é necessário buscar o que diz a historiografia sobre a Etiópia antiga e que impressões registraram outros povos sobre os etíopes.
Ao afirmarem no Kebra Nagast que “Deus amou o povo da Etiópia, pois sem conhecerem Suas leis eles destruíram seus ídolos; mas aqueles para quem a lei foi dada (os judeus) fizeram ídolos e veneraram os falsos deuses que Deus odeia” , os etíopes estão construindo a sua identidade a partir do outro, do diferente. Estão marcando uma clara fronteira cultural que os torna intrinsecamente diferentes dos judeus. Como afirma François Hartog em seu Espelho de Heródoto,
"dizer o outro é enunciá-lo como diferente – é enunciar que há dois termos, a e b, e que a não é b. Por exemplo: existem gregos e não-gregos. Mas a diferença não se torna interessante senão a partir do momento em que a e b entram num mesmo sistema. Não se tinha antes senão uma pura e simples não-coincidência."
A partir do momento em que é definida a diferença fundamental entre dois grupos e a relação que a subjaz, “pode-se desenvolver uma retórica da alteridade própria das narrativas que falem sobretudo do outro”, que tem na figura da inversão – “em que a alteridade se transcreve como um antipróprio” – o meio mais usual para traduzir essa diferença. Assim, os etíopes – constantes em sua fé a Deus – são representados como o contrário dos judeus, que rejeitaram a condição de povo escolhido e se tornaram, portanto, infiéis.
Ora, “um texto não é uma coisa inerte, mas inscreve-se entre um narrador e um destinatário. Entre o narrador e o destinatário existe, como condição para tornar possível a comunicação, um conjunto de saberes semântico, enciclopédico e simbólico que lhes é comum.” Levando que, obviamente, tal afirmação se aplica a toda narrativa, vejamos que imagem outros povos deixaram registradas dos etíopes em suas narrativas, exemplificando o conjunto de saberes evidentes que sobre eles compartilhavam os povos antigos.
Homero e Heródoto são alguns dos autores clássicos gregos que fazem diversas referências à Etiópia, evidenciando a relevância desse povo no contexto internacional antigo. A análise da Bíblia – fonte primária principal de nossa pesquisa, ao lado do Kebra Nagast – usada enquanto documento histórico, focando na temática de nossa pesquisa, traz à tona o relevante papel desempenhado pela Etiópia no espaço geográfico que envolve o eixo “Mediterrâneo Oriental/Mar Vermelho/Oceano Índico”, na Antigüidade. Essa importância é, primariamente, inferida a partir das numerosas citações do povo etíope que encontramos na Bíblia, que é o objeto de nossa análise comparada à da fonte propriamente etíope, o Kebra Nagast. Antes de passarmos às referências, vale lembrar a ressalva feita por Ullendorff : um termo recorrentemente usado na Bíblia para referir-se à Etiópia é “Cush”, que muitas vezes refere-se não somente a esse país propriamente, mas de um modo geral à fronteira da região ao Sul do Egito, incluindo a Núbia; o contexto pode fornecer a chave para saber qual é o caso. Em suma, é um termo hebraico equivalente ao conhecido termo grego Aethiopía. Aqui, portanto, tomaremos Cush e Etiópia como expressões sinônimas usadas na Bíblia para referir-se ao mesmo lugar.
A primeira referência bíblica à Etiópia encontra-se já no relato da criação do mundo, em que Deus cria o Jardim do Éden, de onde nascem quatro grandes rios, um dos quais é o “Geom: rodeia toda a terra de Cuch”. Segundo Josefo, em sua História dos Judeus, trata-se do rio Nilo , versão corroborada por Cheesman, citado por Ullendorff, que fala da importância do Nilo Azul para a vida e História etíope e segundo quem ‘até hoje as fontes do Nilo são chamadas de Giyon’ . Analisando-se a tabela genealógica de Gênesis 10: 6-8, em que vemos Cush ser listado como filho de Cam, a Bíblia fala que todos os seus descendentes se estabeleceram na Ásia, muito embora a única área não-africana citada seja Canaã, correspondente à Palestina. Assim, a Bíblia sugere que os povos proto-árabes seriam descendentes de povos africanos anteriores. Há diversas passagens no Velho Testamento em que a Etiópia, ou Cush, é citada como fronteira da região ao sul do Egito, como em Ezequiel 29: 10 (“...desde Magdol até Siene, e até as fronteiras de Cuch”), Naum 3: 9 (“Cuch era a sua força, e o Egito também sem limite...“), e Eze. 30: 9, onde percebemos que a referência aos “mensageiros enviados por mim, em navios, para assustarem Cuch em sua tranquilidade”, é uma clara referência à navegação subindo o rio Nilo. Os rios da Etiópia também são referidos na Bíblia em Isaías 18: 1, 2: “Ai da terra dos grilos alados, situada além dos rios de Cuch!”. Os “barcos de papiro” citados no versículo 2 podem ser vistos até a atualidade no lago Tana, no Norte da Etiópia.
O profeta Isaías se refere à Etiópia em diversas ocasiões: em Isa. 11: 11, sobre a diáspora: “para resgatar o resto do seu povo, a saber, aquilo que restar na Assíria (...) e em Cuch”; em Isa. 43: 3, citando a Etiópia como resgate pelo povo de Israel: “Por teu resgate dei o Egito, Cuch e Sebá, dei-os em teu lugar”; em Isa. 45: 14, aludindo a seu comércio intenso: “e os mercadores de Cuch, e os sabeus, homens altos, virão a ti e se tornarão teus”; em Isa. 20: 3-5, em uma profecia de libertação: “da mesma maneira que o meu servo Isaías andou nu e descalço durante três anos – sinal e presságio que diz respeito ao Egito e a Cuch –, dessa mesma maneira o rei da Assíria levará os cativos do Egito e os exilados de Cuch (...) Eles ficarão apavorados e envergonhados por causa de Cuch, a sua esperança”.
Uma passagem de especial interesse historiográfico é a de Isaías 37: 9, repetida praticamente nos mesmos termos em 2 Reis 19: 9, em que é encontrada uma alusão à 25ª Dinastia Egípcia, a chamada Dinastia Etíope, em que foi efetivada a união entre o Egito e o “Cush”, citando inclusive nominalmente um de seus faraós (reconhecido pela historiografia): “Por ter recebido um recado a respeito de Taraca, rei de Cuch, dizendo: “ele partiu para a guerra contra ti”.” Além de confirmar o relato de outras fontes e da historiografia sobre o enfrentamento entre o Egito sob dominação “etíope” e o Império Assírio, o versículo deixa subentendido a importância que tinham e o temor que causavam os guerreiros negros do reino cushita nos impérios da Antigüidade .
Em Ester 1:1 são descritos os “limites do mundo”, sendo que estes correspondiam, no momento da escrita do texto, aos limites do domínio persa (que segundo Heródoto não conseguiram submeter os etíopes): “Eis o que aconteceu no tempo de Assuero, este Assuero que reinou desde a Índia até a Etiópia...”. Assim, a Etiópia delimita no texto bíblico uma das fronteiras do mundo conhecido e civilizado.
O livro de Jeremias traz também importantes alusões à Etiópia e aos etíopes, como em Jer. 46: 9, que corrobora a fama de elevada estatura física de que gozam os etíopes, e Jer. 13: 23, onde faz referência à cor negra desse povo: “Pode o etíope mudar a sua pele? O leopardo mudar suas pintas?”. Nos versículos 7 a 12 do capítulo 38, e 16 a 18 do capítulo 39, Jeremias faz um relato a partir do qual podem ser extraídas valiosas informações sobre as relações entre judeus e etíopes, ajudando a quebrar a imagem de povos estanques vivendo isolados na antigüidade, ao mesmo tempo que mostra a ancestralidade da penetração da cultura judaica entre os etíopes, que “desembocará” mais tarde no Kebra Nagast. Trata-se da ocasião em que o rei Ezequias, de Israel, foi convencido a permitir o lançamento do profeta Jeremias em uma cisterna onde morreria de fome, apuro do qual foi salvo graças à intervenção de Ebede-Meleque, um etíope eunuco que vivia na corte de Ezequias. Percebe-se não só a interação entre estes povos, mas também que Ebede-Meleque gozava de alta estima na corte real de Israel, uma vez que o rei atende aos seus apelos e manda que Jeremias seja resgatado da cisterna. Segundo Josefo, tratava-se de um criado do rei, obviamente prosélito judeu, mas com uma posição privilegiada, tendo acesso direto à pessoa do rei, que por sua vez estava disposto a ouvir suas admoestações.
Para mostrar que não se tratava de um fato isolado, um etíope vivendo entre os judeus em Canaã, o texto de 2 Samuel 18: 21 afirma que foi um etíope a serviço do rei Davi que levou a este a notícia da morte de Absalão, filho do rei Saul. Muito diferente da imagem atual, estereotipada, de uma África em geral, e Etiópia em particular, dependente de outras nações e irrelevante no cenário internacional, a Bíblia contém e transmite uma visão em que a Etiópia e os etíopes figuram no primeiro escalão das potências e grandes homens da época, como em Ezequiel 30: 4, 5, 9, onde a Etiópia é retratada como uma poderosa nação aliada do Egito, confiante em si e temida, mas que seria humilhada pelo poder de Deus.
Nos Salmos são também numerosas as referências à Etiópia, como no capítulo 87, versículo 4, que reza: “eu recordo Raab e Babilônia entre os que me conhecem, eis a Filistéia, Tiro e a Etiópia, onde tal homem nasceu”, passagem usualmente interpretada como alusão a grandes centros que possuíam colônias judaicas, o que confirmaria a penetração da cultura judaica na Etiópia desde muito cedo. É também nos Salmos que encontramos a citação preferida da Etiópia na Bíblia (Sal. 68: 32): “Do Egito virão os grandes, a Etiópia estenderá as mãos para Deus”. Essa passagem, que profetizaria a conversão da Etiópia, é citada duas vezes no Kebra Nagast e usada até hoje como lema ou em emblemas heráldicos na Etiópia, como um símbolo da ardente aderência daquele povo à fé cristã.
A Etiópia, relacionada ou não ao Sul do Egito, é mencionada em Daniel 11: 43, em 2 Crônicas 12: 13 e 16: 8, assim como nos capítulos 21, verso 16, e 14, versos 8 a 12, em que é descrito um improvável – sob os pontos de vista histórico e geográfico – ataque dos etíopes ao reino de Judá governado pelo rei Asa: “Zara, o cuchita, marchou contra eles com um exército de um milhão de homens e trezentos carros (...) os cuchitas fugiram e Asa os perseguiu com seu exército”. Mais uma vez é demonstrada, mesmo que soe inverossímil o relato, não é essa a questão, a “fama” e o respeito de que gozavam os etíopes nas relações internacionais do mundo antigo. Ainda no livro de 2 Crônicas, cap. 12 ver. 2, 3, os etíopes são citados como integrantes da força militar com a qual o faraó Sesac capturou cidades de Judá e atacou Jerusalém.
De acordo com Ullendorff, vestígios das relações comerciais de larga escala mantidas entre as nações do universo pan-mediterrânico antigo podem ser encontrados na linguagem usada na escrita dos livros bíblicos de Jó e Provérbios, que são marcados pela presença de palavras do sul da Arábia, demonstrando a longa estabilidade desse processo. Em Jó 28: 19, por exemplo, há referência ao valioso “topázio de Cuch”.
Uma das mais famosas passagens do Velho Testamento referentes à Etiópia é, sem dúvida, Números 12: 1, em que Miriã e Arão se queixam por Moisés ter casado com uma mulher etíope. Embora muitas haja muitas explicações desse relato que dizem que “Cuchita” pode ser aplicado à Zípora, esposa midianita (árabe) de Moisés, isso não explica a indignação dos seus irmãos. Vale ressaltar que na maioria das citações bíblicas usadas nesse texto em que é usado o termo “Cuch”, por exemplo, a Bíblia de Jerusalém tem notas de rodapé explicando que tal termo significa Etiópia. Josefo nos diz que Moisés de fato casou-se com uma princesa etíope de nome Tarlis, encerrando com este matrimônio sua campanha de contra-ofensiva vitoriosa no comando do exército egípcio contra os etíopes. O profeta Amós dá a entender, numa passagem do seu livro (versículo 7 do capítulo 9), que a migração de Israel fora do Egito não seria a única em que Deus tomou parte, o que inclui de algum modo os etíopes: “não sois para mim como os cuchitas, ó israelitas? Não fiz Israel subir da terra do Egito, e os filisteus de Cáftor e os arameus de Quir?” A principal referência à Etiópia no Novo Testamento ocorre em Atos dos Apóstolos 8: 27, onde lemos sobre “um etíope, eunuco e alto funcionário de Candace, rainha da Etiópia”. Este homem etíope era um prosélito judeu que foi batizado na fé cristã por São Felipe, mostrando mais uma vez a inter-relação que havia entre esses povos. Vale destacar que essa passagem também consta no Kebra Nagast, associando esta Candace – provavelmente trata-se de um título das rainhas meroíticas – à rainha de Sabá, como se fossem uma só pessoa, fazendo alusão às passagens de Lucas 11: 31 e Mateus 12: 42, em que Jesus fala da “Rainha do Sul” que veio conhecer a sabedoria de Salomão.
Pela quantidade de citações que ele contém, percebe-se que a fonte primária do Kebra Nagast é o Velho Testamento, principalmente pelo lugar central que seus relatos ocupam na sua estrutura, ela própria retirada de um relato da Bíblia. Trata-se, porém, de uma obra muito mais extensa, em que é percebido um trabalho de ‘colagem’, paráfrase, reescrita de muitos trechos da Bíblia, do Antigo e Novo Testamentos, bem como de escritos rabínicos e apócrifos. Nele há um grande número de citações bíblicas, especialmente Salmos, mas as mudanças na fraseologia, no vocabulário e no contexto tornam difícil definir exatamente o que é texto extraído da Bíblia dentro do Kebra Nagast.
Esta longa série de citações à Etiópia e aos etíopes na Bíblia, assim como as raízes do Kebra Nagast, bíblicas em sua maioria, é evidência suficiente para demonstrar a importância desse povo no recorte temporal estudado, a Antigüidade. Quando aliado às evidências apontadas pela historiografia e pela arqueologia, assim como por diversas outras fontes da época, não bíblicas, como as fontes gregas já citadas, começa-se a perceber que é plenamente factível a elaboração de uma História da África em que esta é ‘tratada em perspectiva positiva, não só de denúncia da miséria e discriminações’, baseada na mesma ‘história da ancestralidade e religiosidade africana’. Uma África com História, e uma História muito diferente da imagem negativa e estereotipada e preconceituosa repassada ao longo do tempo.
Tais evidências em artefatos culturais apenas corroboram o que os artefatos arqueológicos não dão margem à dúvida: o fato de que a Etiópia, no início da era cristã, “era uma potência mercantil de primeiro plano, o que se evidencia pela cunhagem de moeda própria em ouro, prata ou cobre.” A cunhagem de moedas, especialmente de ouro, no mundo antigo, era um ato não só econômico, mas essencialmente político: “Através dela o Estado de Axum [outra denominação para o antigo Estado etíope] proclamava ao mundo sua independência e prosperidade, o nome de seus monarcas e as divisas do reino.” Tanto que por volta do ano 270, na Pérsia, o profeta Mani descreveu Axum em seu Kephalaia como “um dos quatro maiores impérios do mundo.” De fato, as evidências mostram que a Etiópia ocupou a hegemonia mundial das grandes rotas de comércio que tinham como centro a região do corno da África e ligavam desde Bizâncio à Índia. Escavações arqueológicas em vários sítios etíopes “revelaram numerosos objetos de origem não-etíope” , que vão desde estatuetas de Buda à moedas de prata romanas. As influências culturais de egípcios, árabes, judeus, sírios, budistas, armênios, gregos, cristãos bizantinos e outros foram assimilados pela cultura etíope e transformados em algo próprio. Como ressalta Kobishanov,
"o reino axumita foi muito mais do que uma grande potência comercial nas rotas que uniam o mundo romano à Índia e a Arábia ao nordeste da África; foi também um importante centro de difusão cultural, exercendo sua influência ao longo dessas rotas e tendo, ao mesmo tempo, numerosos traços de sua cultura determinados pela influência de muitos países de antiga civilização do nordeste da África e do sul da Arábia, sob seu domínio."
Compreende-se melhor a partir de tais informações a visão que tinham outros povos dos etíopes, assim como o quadro que eles pintaram de si mesmo no século XIII, quando colocaram por escrito o ciclo de lendas sobre a origem de seu Estado de base teocrática no Kebra Nagast. Nossa pesquisa com essa fonte primária africana, atrelada ao Ensino de História da África e de História Antiga africana e às reflexões que as determinações da Lei 10.639 enseja, nos leva à consideração de novas possibilidades analíticas dessa História. O ensino de História Antiga, historicamente, se constitui numa preocupação para os docentes brasileiros, levando em conta a escassez de pesquisas nacionais sobre temas relacionados e à própria falta de interesse pelo tema. Pedro Paulo Funari afirma que tal quadro sofreu nítida e significativa mudança na última década, com a formação de professores para o ensino superior capacitados nesta área, a expansão das pesquisas acadêmicas (nacionais) sobre o mundo antigo, com muitas Universidades tendo em seus quadros professores mestres e doutores com pesquisa própria sobre a Antigüidade, e uma busca de renovação de sua inserção na sala de aula. É exatamente nesse quadro atual de renovação da História antiga que nossa pesquisa se enquadra, potencializada pelo respaldo da referida Lei.
Essa tendência de renovação da História Antiga pode ser sintetizada na seguinte fórmula: continuam-se valorizando os temas tradicionais da História Antiga, que são a base para se estabelecer relações entre a sociedade contemporânea e as antigas; no entanto novos temas começam a ser incluídos, a partir das necessidades contemporâneas, fazendo ligação entre narrativas historiográficas do passado e temas relevantes da atualidade que merecem reflexão pelos alunos. Ou seja, está ocorrendo a diversificação dos objetos e das abordagens, ao lado da integração entre o estudo da Antigüidade e da realidade brasileira contemporânea. Nesse contexto, Funari destaca duas principais inovações interpretativas que vem influenciando positivamente o ensino de História Antiga no Brasil: “a apresentação de uma Antigüidade construída pela historiografia, antes que uma História dada, acabada”, e “o relacionamento entre a Antigüidade e o mundo contemporâneo em que vivemos”.
A nossa pesquisa, focada a princípio na Antigüidade etíope (e norte-africana de um modo geral) e em suas trocas culturais especialmente com o povo judeu, que geraram a saga nacional etíope – nossa fonte, o Kebra Nagast –, possui naturalmente um forte vínculo com a contemporaneidade, que pode ser explorado tendo em vista a Lei 10.639: o Kebra Nagast, além de ser um livro sagrado ancestral para o povo etíope, goza do mesmo status atualmente pelos adeptos da Doutrina Rastafári, amplamente difundida – e paradoxalmente pouco conhecida – no Nordeste do Brasil. Desse modo, a nossa pesquisa possui um alcance duplo: além de trabalhar no resgate da História de uma civilização africana que exerceu importância vital na Antigüidade, trazendo à tona uma imagem desconhecida da África para o ensino de História no Brasil, não estando a Europa permanentemente no centro de tudo, tem a oportunidade de estudar e divulgar de maneira aprofundada as origens africanas ancestrais de uma manifestação afro-americana atual – o Rastafarismo, que possui raízes em organizações políticas e religiosas da África pré-colonial. O Rastafarismo surgiu na Jamaica na década de 1930, a partir das pregações do líder Marcus Garvey. Trata-se de um movimento religioso e sócio-cultural pan-africanista, uma espécie de “sionismo negro”, que considera o último Imperador da Etiópia, Haile Salassie, encarnação de Deus, e prega o retorno de todos os povos negros, trazidos à América como escravos, para a África, a sua terra prometida (Sião). É uma religião abraâmica altamente sincrética, que possui raízes firmemente plantadas na tradição bíblica e no Kebra Nagast. Os rastas usam o passado bíblico da teocracia judaica para formar sua etnia como uma família, uma nação.
As práticas religiosas, o comportamento e a própria aparência dos adeptos do Rastafarismo tem ligações íntimas com o texto bíblico e com o Kebra Nagast, ligações estas praticamente desconhecidas pelo público em geral, especialmente o escolar, o que gera uma visão negativa e preconceituosa dessa manifestação religiosa. Por exemplo, poucos sabem que o uso de dreadlocks, o penteado característico rasta, com longas tranças (embora não universal entre seus adeptos nem exclusivo deles), está relacionado ao voto do nazireado ordenado por Jeová – Jah, na abreviação comumente usada entre os rastas – em determinadas circunstâncias ao seu povo escolhido, conforme o capítulo 6 do livro de Números. Trata-se, assim, de um voto religioso que expressa profunda devoção a Deus, simbolizando ao mesmo tempo a juba do “Leão de Judá” e a rebelião contra os modelos estabelecidos por “Babilônia”, o domínio branco capitalista que vem há séculos explorando a raça negra. Mesmo na linguagem usada pelo Rastafarismo percebe-se a onipresença de termos bíblicos e oriundos do Kebra Nagast, o que denota a ligação e a influência exercida por esses escritos na vida de seus adeptos.
Vale destacar também que a exposição, pelos professores, dos resultados dessa pesquisa para o corpo discente contará com a ajuda de uma das principais manifestações e forma de expressão da cultura rasta: a sua musicalidade, sendo a música Reggae muito popular em nossa região, o que facilitará sua inserção em sala de aula. O Reggae, mais do que simples música para entretenimento, trata-se de expressão da religiosidade Rastafári, contendo suas letras inúmeras referências à Bíblia e ao “Livro”, o Kebra Nagast. Muitas letras também são expressões de protesto racial e político.
Marcos José de Melo
Graduando em História pela Universidade de Pernambuco; membro do Leitorado Antiguo – Grupo de Ensino e Extensão em História Antiga; Bolsista em Iniciação Científica FACEPE/CNPq; email:
marcos_melo83@hotmail.com
Prof. Dr. José Maria Gomes de Souza Neto
Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco/Faculdade de Formação de Professores de Narazé da Mata; coordenador do Leitorado Antiguo – Grupo de Ensino e Extensão em História Antiga; email:
zemariat@uol.com.br
Se você tiver interesse em receber uma cópia do livro Kebra Nagast, com a tradução em inglês de Sir. E. A. Wallis Budge (publicado em 2000 e revisado em 2008), no qual esse artigo foi baseado, envie um e mail
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