Mostrando postagens com marcador frantz fanon. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador frantz fanon. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 17 de junho de 2021

POR UMA REVOLUÇÃO AFRICANA :: TEXTOS POLÍTICOS POR FRANTZ FANON

Por uma revolução africana: Textos políticos Capa comum – 8 março 2021

- https://fyashop.com.br/Por-Uma-Revolucao-Africana-Textos-Politicos-Capa-Comum

Uma poderosa coletânea que marca o desenvolvimento político e filosófico de um dos mais importantes pensadores da luta antirracista e anticolonial.

Recém-formado, em 1953 Frantz Fanon deixa a França para chefiar a ala psiquiátrica de um hospital na Argélia, encontrando um país em combustão social. No ano seguinte, eclode a guerra pela independência. Mergulhado na situação dramática vivida pelo povo argelino e africano em geral, ele adere ao movimento revolucionário como intelectual e militante da Frente de Libertação Nacional.

Por uma revolução africana é uma bússola do percurso de Fanon, oferecendo um panorama privilegiado do desenvolvimento de sua obra e de suas teses políticas, filosóficas e psicanalíticas. Escritos entre 1951 e 1961― anos decisivos em que produziu os clássicos Pele negra, máscaras brancas e Os condenados da terra ― e agora reunidos nessa poderosa coletânea de artigos, ensaios e cartas, seus textos políticos dão prova da potência transformadora e original que fez de seus pensamentos e ações um modelo paradigmático do intelectual ativista.

Médico, filósofo político, teórico do colonialismo e das possibilidades de superá-lo, militante da independência africana, o psiquiatra martinicano foi antes de tudo um revolucionário, inspiração central para os movimentos negros e de direitos civis no mundo. Por meio de uma profunda análise da situação do colonizado ― que pode diagnosticar através de sua experiência médica diária ―, Fanon disseca a opressão imperialista e o efeito psicológico devastador causado pelo racismo, examinando questões como o panafricanismo, os sentidos da negritude na África e no Caribe e a atitude da esquerda francesa diante da Guerra da Argélia.

Autor incontornável, Frantz Fanon nos dá as chaves para compreender os mecanismos da estrutura racista e colonial que segue nos assombrando.


O livro tem prefácio de Deivison Faustino, professor da Unifesp e especialista na obra de Fanon.


“O mais poderoso teórico do racismo e do colonialismo do século XX.” ― Angela Davis


Sobre o Autor

FRANTZ OMAR FANON nasceu na Martinica em 1925. Psiquiatra, filósofo político e militante revolucionário, foi um dos mais importantes pensadores e ativistas a tratar das questões antirracistas e anticoloniais. Autor de obras fundamentais como Peles negras, máscaras brancas e Os condenados da terra, morreu precocemente em 1961, aos 36 anos.


💥 Visite: www.fyadub.org / www.fyashop.com.br


💥 Frete grátis nas compras acima de R$ 250,00


💥 Todos os títulos em até 6x sem juros.


💥 Oferta válida por 5 dias. 


💥 Obrigatório o cadastro no lojinha com os dados de envio: cadastre-se no link: https://fyashop.com.br/index.php?route=account/register


💥 Quer entrar em contato; use a página https://fyashop.com.br/index.php?route=information/contact, ou https://www.facebook.com/fyadub.fyashop para mensagem inbox, ou WhatsApp 11 99984.4213, ou e mail contato@fyashop.com.br


domingo, 5 de agosto de 2012

PREFÁCIO - OS CONDENADOS DA TERRA DE FRANTZ FANON, POR JEAN PAUL SARTRE

Os Condenados da Terra de Frantz Fanon (1961)
PREFÁCIO - JEAN PAUL SARTRE 

Não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros pediam-no emprestado. Entre aqueles e estes, régulos vendidos, feudatários e uma falsa burguesia pré-fabricada serviam de intermediários. Às colônias a verdade se mostrava nua; as “metrópoles” queriam-na vestida: era preciso que o indígena as amasse. Como às mães, por assim dizer. A elite européia tentou engendrar um indigenato de elite; selecionava adolescentes, gravava-lhes na testa, com fero em brasa, os princípios da cultura ocidental, metia-lhes na boca mordaças sonoras, expressões bombásticas e pastosas que grudavam nos dentes; depois de breve estada na metrópole, recambiava-os, adulterados. Essas contrafacções vivas não tinham mais nada a dizer a seus irmãos; faziam eco; de Paris, de Londres, de Amsterdã lançávamos palavras: “Partenon! Fraternidade!”, e, num ponto qualquer da África, da Ásia, lábios se abriam: “… tenon!…nidade!” Era a idade de outro.

Isto acabou. As bocas passaram a abrir-se sozinhas; as vozes amarelas e negras falavam ainda do nosso humanismo, mas para censurar a nossa desumanidade. Escutávamos sem desagrado essas corteses manifestações de amargura. De início houve um espanto orgulhoso: Quê! Eles falam por eles mesmos! Vejam só que fizemos deles! Não duvidávamos que aceitassem o nosso ideal porquanto nos acusavam de não sermos fiéis a ele; por esta vez a Europa acreditou em sua missão: havia helenizado os asiáticos e criado esta espécie nova: os negros greco-latinos. Ajuntávamos, só para nós, astutos: deixemos que se esgoelem, isso os alivia; cão que ladra não morde.

Surgiu uma outra geração que alterou o problema. Seus escritores, seus poetas, com incrível paciência trataram de nos explicar que nossos valores não se ajustavam bem à verdade de sua vida, que não lhes era possível rejeita-los ou assimila-los inteiramente. Em suma, isso queria dizer: de nós fizestes monstros, vosso humanismo nos supõe universais e vossas práticas racistas nos particularizam. E nós os escutávamos despreocupados; os administradores coloniais não são pagos para ler Hegel, aliás lêem-no pouco, mas não precisam desse filósofo para saber que as consciências infelizes se emaranham nas próprias contradições. Nenhuma eficácia. Por conseguinte, perpetuemos-lhes a infelicidade, que dela não resultará coisa alguma. Se houvesse, diziam-nos os peritos, uma sombra de reivindicação em seus gemidos, outra não seria que a de integração. Não se trata de outorga-la, é claro, isso arruinaria o sistema, que repousa, como se sabe, na super exploração. Mas bastaria acenar-lhes com essa patranha: viriam correndo. Quanto à possibilidade de revolta, estávamos tranqüilos. Que indígena consciente iriam massacrar os filhos da Europa com o fim único de se tornar europeu como eles? Numa palavra, estimulávamos essas melancolia e não achamos mau, uma vez, conceder o prêmio Goncourt a um negro. Isso ocorreu antes de 39.

1961. Escutai: “Não percamos tempo com litanias estéreis ou mimetismos nauseabundos. Deixemos essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por toda a parte onde o encontra, em todos as esquinas de suas próprias ruas, em todas as esquinas do mundo. Há séculos… que em nome de uma suposta ´aventura espiritual´ vem asfixiando a quase totalidade da humanidade”. Este tom é novo. Quem ousa adotá-lo? Um africano, homem do Terceiro Mundo, antigo colonizado. Acrescenta ele: “A Europa adquiriu uma velocidade tão louca, tão desordenada… que a arrasta para o abismo, do qual é melhor que nos afastemos.” Em outras palavras: ela está atolada. Uma verdade que não é boa de dizer mas da qual – não é mesmo, meus caros co-continentais? – estamos todos intimamente convencidos.

Cumpre fazer uma ressalva, porém. Quando um francês, por exemplo, diz a outros franceses: “Estamos atolados!” – o que, pelo que sei, se verifica quase todos os dias desde 1930 – trata-se de um discurso passional, ardente de cólera e amor, em que o orador se compromete com todos os seus compatriotas. E depois geralmente acrescenta: “A menos que…” Sabe-se o que isto significa: é impossível enganar-se a este respeito: se suas recomendações não forem seguidas à risca, então e somente então o país se desintegrará. Enfim, é uma ameaça seguida de um conselho, e essas conversas chocam tanto menos quanto jorram da intersubjetividade nacional. Quando Fanon, ao contrário, diz que a Europa cava a sua própria ruína, longe de soltar um grito de alarma, apresenta um diagnóstico. Este médico não pretende nem condena-la sem apelação – há tais milagres – nem lhe fornecer os meios de cura; constata que ela agoniza. De foram baseando-se nos sintomas que pôde recolher. Quanto a trata-la, não. Ele tem outras preocupações na cabeça; pouco se lhe dá que ela arrebente ou sobreviva. Por este motivo, seu livro é escandalosos. E se murmurais, entre divertidos e embaraçados: “Que é que ele nos propõe?”, deixais de perceber a verdadeira natureza do escândalo, uma vez que Fanon não vos “propõe” absolutamente nada; sua obra – tão abrasadora para outros – para vós permanece gelada; amiúde fala de vós, mas nunca a vós. Acabaram-se os Goncourt negros e os Nobel amarelos; não voltará mais o tempo dos laureados colonizados. Um ex-indígena “de língua francesa” sujeita esta língua a exigências novas, serve-se dela para dirigir-se apenas aos colonizados: “Indígenas de todos os países subdesenvolvidos, uni-vos!”. Que rebaixamento; para os pais, éramos os únicos interlocutores; os filhos nem nos consideram ais como interlocutores admissíveis: somos os objetos do discurso. Evidentemente Fanon menciona de passagem nossos crimes famosos, Sétif, Hanói, Madagascar, mas não perde o seu temo a condená-los; utiliza-os. Se desmonta as táticas do colonialismo , o complexo jogo das relações que unem e opõem os colonos aos “metropolitanos”, faz isso para seus irmãos; seu objetivo é ensiná-los a desmantelar-nos.

Jean Paul Sartre
Numa palavra, o Terceiro Mundo se descobre e se exprime por meio desta voz. Sabemos que ele não é homogêneo e que nele se encontram ainda povos subjugados, outros que adquiriram uma falsa independência, outros que se batem para conquistar a soberania, outros enfim que obtiveram a liberdade plena mas vivem sob a constante ameaça de uma agressão imperialista. Essas diferenças nasceram da história colonial, isto é, da opressão. Aqui a Metrópole contentou-se em pagar alguns feudatários; ali, dividindo para reinar, fabricou em bloco uma burguesia de colonizados. Mais além matou dois coelhos de uma só cajadada: a colônia é ao mesmo tempo de exploração e de povoamento. Assim a Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou classes e por vezes racismos, tentou por todos os meios provocar e incrementar a estratificação das sociedades colonizadas. Fanon não dissimula nada: para lutar contra nós, a antiga colônia deve lutar contra ela mesma. Ou melhor, as duas formas de luta são uma só. No fogo do combate, todas as barreiras interiores devem derreter-se. A impotente burguesia de negocistas e compradores, o proletariado urbano, sempre privilegiado, o lumpenproletariat das favelas, todos têm de se alinhar nas posições das massas rurais, verdadeiro reservatório do exército nacional e revolucionário; nas regiões cujo desenvolvimento foi deliberadamente sustado pelo colonialismo, o campesinato, quando se revolta, aparece logo como a classe radical: conhece a opressão nua, suporta-a muito mais que os trabalhadores da s cidades e, para que não morra de fome, precisa nada mesmos que de um estouro de todas as estruturas. Triunfando, a Revolução nacional será socialista; detido seu ímpeto, a burguesia colonizada toma o poder, e o novo Estado, a despeito de uma soberania formal, continua nas mãos dos imperialistas. O exemplo de Katanga é bastante ilustrativo. Assim, a unidade do Terceiro Mundo não está concluída: é um empreendimento em curso, que passa pela união, em cada país, antes de também depois da independência, de todos os colonizados, sob o comando da classe camponesa. Eis o que Fanon explica a seus irmãos da África, da Ásia, da América latina: realizaremos todos em conjunto e por toda a parte o socialismo revolucionário ou seremos derrotados um a um por nossos antigos tiranos. Não dissimula nada, nem as fraquezas, nem as discórdias, nem as mistificações. Aqui o movimento começa mal; ali, após êxitos, fulminantes, perde velocidade; noutra parte está parado: para que se reinicie, é necessário que os camponeses lancem sua burguesia ao mar. O leitor é severamente acautelado contra as alienações mais perigosas: o líder, o culto da personalidade, a cultura ocidental e, também o retorno do longínquo passado da cultura africana; a verdadeira cultura é a Revolução; isso que fizer que ela se forja a quente. Fanon fala em voz alta; nós, os europeus, podemos ouvi-lo: a prova é que temos nas mãos este livro. Não teme ele que as potências coloniais tirem proveito de sua sinceridade?

Não. Não teme nada. Nossos processos estão peremptos; podem talvez retardar a emancipação, mas não a impedirão. E não imaginemos que poderemos reajustar os nossos métodos: o neocolonialismo, sonho preguiçoso das Metrópoles, é vão; as “Terceiras Forças” não existem ou são falsas burguesias que o colonialismo já colocou no poder. Nosso maquiavelismo tem poucos poderes sobre este mundo extremamente vigilante que desmascarou uma após outra as nossas mentiras. O colono só tem um recurso: a força, quando esta ainda lhe sobra: o indígena só tem uma alternativa: a servidão ou a soberania. Que importa a Fanon que leiamos ou não a sua obra? É a seus irmãos que ele denuncia nossas velhas artimanhas, para as quais não dispomos de sobressalentes. É a eles que Fanon diz: a Europa pôs as patas em nossos continentes, urge golpeá-las até que ela as retire; o momento nos favorece; nada acontece em Bizerta, em Elizabethville, no deserto argelino, que não chegue ao conhecimento de toda a Terra: os blocos tomam partidos contrários, encaram-se como respeito; aproveitemos essa paralisia, entremos na história e que nossa irrupção a torne universal pela primeira vez; na falta de outras armas, a perseverança da faca será suficiente.

Europeus, abri este livro, entrai nele. Depois de alguns passos na noite, vereis estrangeiros reunidos ao pé do fogo, aproximai-vos, escutai; eles discutem a sorte que reservam às vossas feitorias, aos mercenários que as defendem. Eles vos verão talvez, mas continuarão a falar entre si, sem mesmo baixar a voz. Essa indiferença fustiga o coração: os pais, criaturas da sombra, vossas criaturas, eram almas mortas, vós lhes dispensáveis a luz, eles só se dirigiam a vós, e vós não perdíeis tempo em responder a esses zumbis. Os filhos não fazem caso de vós; um fogo os ilumina e aquece, e vós vos sentireis furtivos, noturnos, transidos; a cada um a sua vez; nessas trevas de onde vai surgir uma outra aurora, os zumbis sóis vós.

Nesse caso, direis, joguemos este livro pela janela. Por que temos de o ler se não foi escrito para nós? Por dois motivos. O primeiro é que Fanon vos explica a seus irmãos e desmonta para eles o mecanismo de nossas alienações; aproveitai para vos descobrir a vós mesmos em vossa verdade de objetos. Nossas vítimas nos conhecem por suas feridas e seus grilhões; é isto que torna seus testemunho irrefutável. Basta que nos mostrem o que fizemos delas para que conheçamos o que fizemos de nós, Isso é útil? Sim, visto que a Europa está na iminência de rebentar. Mas, direi vós ainda, vivemos na Metrópole e reprovamos os excessos. É verdade: não sois colonos, mas não sois melhores do que eles. São vossos pioneiros, vós os enviastes para o ultramar, eles vos enriqueceram; vós os tínheis prevenido: se fizessem correr muito sangue, vós os reprovaríeis com desdém; da mesma forma, um Estado – qualquer que seja – mantém no estrangeiro uma turba de agitadores, de provocadores e espiões, aos quais reprova quando são apanhados. Vós, tão liberais, tão humanos, que levai os amor da cultura até ao preciosismo, fingis esquecer que tendes colônias e que nelas se praticam massacres em vosso nome. Fanon revela a seus camaradas – a alguns dentre eles, sobretudo, que continuam um pouco ocidentalizados demais –a solidariedade dos “metropolitanos” e seus agentes coloniais. Tende a coragem de o lar, por esta primeira razão de que ele fará com que vos sintais envergonhados, e a vergonha, como disse Marx, é um sentimento revolucionário. Vede: eu também não posso desprender-me da ilusão subjetiva. Eu também vos digo: “Tudo está perdido, a menos que…” Europeu, furto o livro de um inimigo e faço dele um meio de curar a Europa. Aproveitai.

Eis o segundo motivo: se rejeitarmos a lenga-lenga fascista de Sorel, veremos que Fanon é o primeiro desde Engels a repor em cena a parteira da história. E não se creia que um sangue demasiado ardente ou desventuras da infância lhe tenham dado para a violência não sei que gosto singular: ele se faz intérprete da situação, nada mais. Mas isso basta para que ele constitua, etapa por etapa, a dialética que a hipocrisia liberal oculta de nós e que nos produziu tanto quanto a ele.

No século passado a burguesia considerava os operários invejosos, corrompidos por apetites grosseiros, mas teve o cuidado de incluir esses selvagens em nossa espécie: se não fossem homens e livres, como poderiam vender livremente sua força de trabalho? Na França, na Inglaterra, os humanismo pretender ser universal.

Com o trabalho forçado, dá-se o contrário; nada de contrato; além disso, é preciso intimidar; patenteia-se portanto a opressão. Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar seus semelhante, escraviza-lo ou mata-lo, eles dão por assente que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumaniza-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o camponês; vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegra-lhe a personalidade. A coisa é conduzida a toque de caixa, por peritos: não é de hoje que datam os “serviços psicológicos”. Nem a lavagem cerebral. E, no entanto, malgrado tantos esforços, o objetivo não é atingido em parte nenhuma: no Congo, onde se cortavam as mãos dos negros, nem em Angola onde, bem recentemente, furavam-se os lábios dos descontentes para os fechar com cadeados. E não afirmo que seja impossível converter um homem num animal: digo que não se chaga a tanto sem o enfraquecer consideravelmente; as bordoadas não bastam, é necessário recorrer à desnutrição. É o tédio, com a servidão. Quando domesticamos um membro de nossa espécie, diminuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe demos, um homem reduzido à condição de animal doméstico acaba por custar mais do que produz. Por esse motivo os colonos vêem-se obrigados a parar a domesticação no meio do caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente, amedrontado, mas só até certo ponto, tem ele, seja amarelo, negro ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de nada e só reconhece a força.

Pobre colono: eis sua contradição posta a nu. Deveria, dizem, como faz o gênio, matar as vítimas de suas pilhagens. Mas isso não é possível. Não é preciso também que as explore? Não podendo levar o massacre até ao genocídio e a servidão até ao embrutecimento, perde a cabeça, a operação de desarranjo e uma lógica implacável há de conduzi-la até à descolonização.

Não de imediato. A princípio o europeu reina: já perdeu mas não se dá conta disso; ainda não sabe que os indígenas são falsos indígenas; atormenta-os, conforme alega, para destruir ou reprimir o mal que há neles. Ao cabo de três gerações, seus instintos perniciosos não renascerão mais. Que instinto? Os que compelem os escravos a massacrar o senhor? Como não reconhece nisto a sua própria crueza voltada contra ele? A selvageria dos camponeses oprimidos, como não reencontra nela sua selvageria de colono, que eles absorveram por todos os poros e de que não estão curados? A razão é simples. Esse personagem arrogante, enlouquecido por todo o seu poder e pelo medo de o perder, já não se lembrar realmente que foi um homem: julga-se uma chibata ou um fuzil; chegou a acreditar que a domesticação das “raças inferiores” se obtém através do condicionamento dos seus reflexos. Negligencia a memória humana, as recordações indeléveis; e depois, sobretudo, há isto que talvez ele jamais tenha sabido: nós não nos tornamos o que somos senão pela negação íntima e radical do que fizeram de nós. Três gerações? Desde a segunda, mal abriram os olhos, os filhos viram os pais serem espancados. Em termos de psiquiatria, ei-los “traumatizados”. Para a vida inteira. Mas essas agressões incessantemente renovadas, longe de os induzir à submissão, atiram-nos numa contradição insuportável pela qual cedo ou tarde o europeu pagará. Depois disso, o aprendizado a que por sua vez serão submetidos, aprendizado de humilhação, dor e fome, suscitará em seus corpos uma ira vulcânica cujo poder é igual ao da pressão que se exerce sobre eles. Será, dizei vós, que só conhecem a força? Por certo; de início será apenas a do colono e, pouco depois, a deles, isto é, a mesma que recai sobre nós da mesma maneira que o nosso reflexo vem do fundo de um espelho ao nosso encontro. Não nos iludamos; por essa cólera louca, por essa bile e esse fel, por seu desejo permanente de nos matar, pela contração constante de músculos poderosos que têm medo de se esticar, eles são homens: pelo colono, que os quer servos, e contra ele. Cego ainda, abstrato, o ódio é o seu único tesouro. O Patrão provoca-o porque procura bestializá-lo, falha em destruí-lo porque seus interesses o detêm a meio caminho. Assim, os falsos indígenas ainda são humanos, pela força e a impotência do opressor que se transformam neles numa obstinada recusa à condição animal. Quanto ao mais, já se sabe: são preguiçosos, é claro, e isso é sabotagem. Dissimulados, ladrões, sem dúvida; seus pequenos furtos assinalam o começo de uma resistência ainda desorganizada. Isso não basta; para que se afirmem têm de investir desarmados contra os fuzis. Estão os seus heróis, e outros se fazem homens assassinando europeus. São mortos. Bandidos e mártires, seu suplício exalta as massas aterrorizadas.

Aterrorizadas, sim. Neste novo momento a agressão colonial se interioriza em Terror entre os colonizados. Não me refiro somente ao temor que experimental diante de nossos inesgotáveis meios de repressão como também ao que lhes inspira seu próprio furor. Estão entalados entre as armas que apontamos contra eles e as tremendas pulsões, os desejos de carnificina que sobem do fundo do coração e que eles sempre reconhecem, porque não é de início a violência deles, mas a nossa, voltada para trás, que se avoluma e os dilacera; e o primeiro movimento desses oprimidos é ocultar profundamente essa cólera inconfessável que a sua moral e a nossa reprovam e que, todavia, é o último reduto de sua humildade. Leiamos Fanon: descobriremos que, no tempo de sua impotência, a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo dos colonizados.

Essa fúria contida, que não se extravasa, ainda à roda e destroça os próprios oprimidos. Para se livrarem dela, entrematam-se: as tribos batem-se umas contra as outras por não poderem atacar de frente o verdadeiro inimigo – e podemos contar com a política colonial para alimentar essas rivalidades; o irmão, empunhando a faca contra o irmão, acredita destruir, de uma vez por todas, a imagem detestada de seu aviltamento comum. Mas essas vítimas expiatórias não lhes aplacam a sede de sangue. Abstendo-se de marchar contras as metralhadoras, eles se tornarão nosso cúmplices: vão por sua própria autoridade acelerar os progressos dessa desumanização que lhes repugna. Sob o olhar divertido do colono, premunir-se-ão contra eles mesmos com barreiras sobrenaturais, oura reavivando velhos mitos terríveis, ora atando-se fortemente com ritos meticulosos; assim o obsesso livra-se de sua exigência profunda abandonando-se a manias que o solicitam a todo instante. Dançam, e isto os ocupa, aliviando-lhes os músculos dolorosamente contraídos. De resto, a dança exprime por mímica, secretamente, muitas vezes sem que o saibam, o Não que não podem dizer, os homicídios que não se atrevem a cometer. Em certas regiões valem-se deste último recurso: a possessão. O que era outrora o fato religioso em sua simplicidade, uma certa comunicação do fiel com o sagrado, se transforma numa arma contra o desespero e a humilhação; os zars, as loas, os Santos descem neles, governam-lhes a violência e a dissipam em transes até ao esgotamento. Ao mesmo tempo esses altos personagens os protegem; isso quer dizer que os colonizados se defendem da alienação colonial voltando-se para a alienação religiosa. No fim de contas, o único resultado é a acumulação de duas alienações, cada qual reforçada pela outra. Assim, em certas psicoses, cansados de serem insultados todos os dias, os alucinados imaginam de repente ouvir uma voz de anjo que nos cumprimenta; por outro lado, não cessam as graçolas, que dia em diante alternam com a saudação. É uma defesa e é o fim de sua aventura: a pessoa está dissociada, o doente se encaminha para a demência. Acrescentemos, para alguns infelizes rigorosamente selecionados, essa outra possessão de que já falei anteriormente: a cultura ocidental. No lugar deles, direis vós, eu preferia meus zars à Acrópole. Bom, compreendestes. Não completamente, porém, porque não estais no lugar deles. Ainda não. De outro modo, saberíeis que não podem escolher e acumulam. Dois mundos, isso faz duas possessões: dançam a noite inteira e de manhã apinham-se na igreja para ouvir missa; a fenda aumenta sem parar. Nosso inimigo trai seus irmãos e se faz nosso cúmplice; seus irmãos fazem outro tanto. O indigenato é uma neurose introduzida e mantida pelo colono entre os colonizadores com o consentimento deles.

Reclamar e renegar, a um só tempo, a condição humana: a contradição é explosiva. Efetivamente explode, vem o sabemos. E vivemos no tempo da deflagração: quer o aumento da natalidade amplie a miséria, quer os recém-chegados devam recear viver um pouco mais que morrer, a torrente da violência derruba todas as barreiras. Na Argélia e em Angola os europeus são massacrados onde aparecem. É o momento do bumerangue, o terceiro tempo da violência: ela se volta contra nós, atinge-nos e, como das outras vezes, não compreendemos que é a nossa. Os “liberais” ficam aparvalhados; reconhecem que não fomos bastante polidos com os indígenas, que teria sido mais justo e mais prudente conceder-lhes certos direitos na medida do possível; eles pretendiam apenas ser admitidos em massa e sem padrinhos nesse clube fechadíssimo que é a nossa espécie; e eis que esse desencadeamento bárbaro e louco não os poupa assim como não poupa os maus colonos. A Esquerda Metropolitana inquieta-se: conhece a verdadeira sorte dos indígenas, a opressão impiedosa de que são objeto, não lhes condena a revolta, sabendo que tudo fizemos para provoca-la. Mas, ainda assim pensa ela, há limites: esses guerrilheiros deveriam empenhar-se em mostrar certo cavalheirismo; seria o melhor meio de provar que são homens. Às vezes ela os censura: “Vocês estão se excedendo, não os apoiaremos mais”. Eles não dão bola: ela bem que pode pegar esse apoio e pendurar no pescoço. Desde que sua guerra começou, eles perceberam esta verdade rigorosa: nós todos valemos pelo que somos, todos nos aproveitamos deles, e eles não têm que provar nada, não dispensarão tratamento de favor a ninguém. Um dever único, um único objetivo: combater o colonialismo por todos os meios. E os mais avisados dentre nós estariam, a rigor, prontos a admiti-lo, mas não podem deixar de ver nessa prova de força o recurso inteiramente desumano de que se serviram os sub-homens para se fazer outorgar uma carta de humanidade: vamos concedê-la o mais depressa possível e que eles tratem então, por métodos pacíficos, de a merecer. Nossa bela alma é racista.

Ela só terá a lucrar com a leitura de Fanon. Essa violência irreprimível, ele o demonstra cabalmente, não é uma tempestade absurda nem a ressurreição de instintos selvagens e nem mesmo um efeito do ressentimento; é o próprio homem que se recompõe. Sabíamos, creio eu, e esquecemos esta verdade: nenhuma suavidade apagará as marcas da violência: só a violência é que pode destruí-las. E o colonizado se cura da neurose colonial, passando o colono pelas armas. Quando sua raiva explode, ele reencontra sua transparência perdida e se conhece na medida mesma em que se faz; de longe consideramos a guerra como o triunfo da barbárie; mas ela procede por si mesma à emancipação progressiva do combatente, liquidando nele e fora dele, gradualmente, as trevas coloniais. Uma vez iniciada, é impiedosa. É necessário permanecer aterrorizado ou tornar-se terrível, quer dizer: abandonar-se às dissociações de uma vida falsificada ou conquistar a unidade natal. Quando os camponeses tocam nos fuzis, os velhos mitos empalidecem, e caem por terra, uma a uma, as interdições. A arma do combatente é a sua humanidade. Porque, no primeiro tempo da revolta, é preciso matar; abater um europeu é matar dois coelhos de uma só cajadada, é suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido: restam um homem morto e um homem livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob a planta dos pés. Nesse instante a Nação não se fasta dele; ele a encontra aonde for, onde estiver – nunca mais longe, ela se confunde com sua liberdade. Mas, após a primeira surpresa, o exército colonial reage: então é necessário unir-se ou deixar-se massacrar. As discórdias tribais atenuam-se, tendem a desaparecer em primeiro lugar porque põem em perigo a Revolução e, mais profundamente, porque não tinham outra função que desviar a violência para falsos inimigos. Quando continuam – como no Congo – é porque são alimentadas pelos agentes do colonialismo. A Nação põe-se em marcha; para cada irmão ela está em toda a parte onde outros irmãos combatem. Seu amor fraternal é o inverso de ódio que eles nos votam: irmãos pelo fato de que cada um deles matou ou poderia de um instante para outro ter matado. Fanom mostra a seis leitores os limites da “espontaneidade”, a necessidade e os perigos da “organização”. Mas, seja qual for a imensidade da tarefa, a cada desdobramento da empreitada a consciência revolucionária se aprofunda. Desvanecem-se os derradeiros complexos; não nos venham falar no “complexo de dependência” do soldado do Exército de Libertação Nacional. Livre dos seus antolhos, o camponês toma conhecimento das suas necessidades: matavam-no mas ele tentava ignorá-las; descobre-as agora como exigências infinitas. Nessa violência popular – que dura cinco anos, oito anos como no caso dos argelinos – não se podem distinguir as necessidades militares, sociais e políticas. A guerra, suscitando o problema do comando e das responsabilidades, estabelece novas estruturas que serão as primeiras instituições da paz. Eis então o homem instaurado até as tradições novas, filhas futuras de um horrível presente, ei-lo legitimado por um direito que vai nascer, que nasce cada dia no fogo da batalha. Com o último colono morto, reembarcado ou assimilado, a espécie minoritária desaparece, cedendo lugar à fraternidade socialista. E isso ainda não é suficiente: esse combatente queima as etapas; cuidais que ele não arriscará a pele para se reencontrar ao nível do velho homem “metropolitano”. Vede sua paciência: é possível que ele sonhe algumas vezes com um novo Dien-Bien-Phu; mas ficai certos de que não conta realmente com isto; é um mendigo lutando, em sua miséria, contra ricos poderosamente armados. Esperando as vitórias decisivas e muitas vezes sem nada esperar, atormenta seus adversários até ao enfado. Isso é inseparável de perdas tremendas; o exército colonial torna-se feroz: patrulhas, operações de limpeza, reagrupamentos, expedições punitivas; mulheres e crianças são massacradas. Sabe disto esse homem novo; ele começa sua vida pelo fim; considera-se um morto virtual. Será morto, e não somente aceita o risco mas tem a certeza de que será eliminado. Esse morto virtual perdeu a mulher e os filhos e viu tantas agonias que antes quer vencer que sobreviver; outros aproveitarão a vitória, não ele, que está cansado demais. Contudo, essa fadiga do coração está no princípio de uma coragem inacreditável. Encontramos nossa humanidade do lado de cá da morte e do desespero, ele a encontra do lado de lá dos suplícios e da morte. Fomos os semeadores de ventos; ele é a tempestade. Filho da violência, extrai dela a cada instante a sua humanidade; fomos homens à custa dele; ele se faz homem à nossa custa. Um outro homem, de melhor qualidade.

Aqui Fanon faz alto. Mostrou o caminho; porta-voz dos combatentes, reclamou a união, a unidade do continente africano contra todas as discórdias e todos os particularismos. Atingiu seu objetivo. Se quisesse descrever integralmente o fato histórico da descolonização, teria de falar e mós, o que certamente não é seu propósito. Mas o livro, depois que o fechamos, continua a acossar-nos, apesar de seu autor, porque sentimos o vigor dos povos em revolução e respondemos com a força. Há, portanto, um novo momento da violência e é para nós ,desta vez, que temos de nos voltar, porque ela nos está transformando na medida em que o falso indígena se transforma através dela. Cada qual poderá conduzir suas reflexões como quiser. Contanto, porém, que tenha isto em mente: na Europa de hoje, completamente aturdida com os golpes que lhe são desferidos na França, na Bélgica, na Inglaterra, a menor distração do pensamento é uma cumplicidade criminosa com o colonialismo. Este livro não precisava de prefácio, tanto menos porque não se dirige a nós. Contudo, eu lhe fiz um para levar a dialética até ao fim. É necessário que nós, europeus, nos descolonizemos, isto é, extirpemos, por meio de uma operação sangrenta, o colono que há em cada um de nós. Examinemo-nos, se tivermos coragem, e vejamos o que se passa conosco.

Encaremos primeiramente este inesperado: o strip-tease de nosso humanismo. Ei-lo inteiramente nu e não é nada belo: não era senão uma ideologia mentirosa, a requintada justificação da pilhagem; sua ternura e seu preciosismo caucionavam nossas agressões. Têm boa aparência os não-violentos: nem vítimas nem verdugos! Vamos! Se não sois vitima,s quando o governo que referendastes num plebiscito e quando o exército em que serviram vossos jovens irmãos levaram a cabo, sem hesitação nem remorso, um “genocídio”, sois indubitavelmente verdugos. E se escolheis ser vítimas, arriscar um ou dois dias de cadeia, escolheis simplesmente livrar-vos de uma embrulhada. Mas não vos livrareis; é mister permanecer nela até ao fim. De resto é necessário compreender isto: se a violência tivesse começado esta note, se nunca a exploração nem a opressão tivessem existido na face da terra, talvez a não-violência alardeada pudesse apaziguar a contenda. Mas se o próprio regime e até os vossos não-violentos pensamentos estão condicionados por uma opressão milenar, vossa passividade só serve para vos colocar do lado dos opressores.

Sabeis muito vem que somos exploradores. Sabeis que nos apoderamos do ouro e dos metais e, posteriormente, do petróleo dos “continentes novos” e que os trouxemos para as velhas metrópoles. Com excelentes resultados: palácios, catedrais, capitais industriais; e quando a crise ameaçava, estavam ali os mercados coloniais para a amortecer ou desviar. A Europa, empanturrada de riquezas, concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes; entre nós, um homem significa um cúmplice, visto que todos nós lucramos com a exploração colonial. Este continente gordo e lívido acabou por dar no que Fanon chama com justeza o “narcisismo”. Cocteau irritava-se com Paris, “esta cidade que fala o tempo todo de si mesma”. E a Europa, que faz ela? E esse monstro supereuropeu, a América do Norte? Que tagarelice: liberdade, igualdade, fraternidade, amor, honra, pátria, que seu eu? Isso não nos impedia de fazermos discursos racistas, negro sujo, judeu sujo, etc. Bons espíritos, liberais e ternos – neocolonialistas, em suam – mostravam-se chocados com essa inconseqüência; erro ou má-fé: nada mais conseqüente, em nosso meio, que um humanismo racista, uma vez que o europeu só pode fazer-se homem fabricando escravos e monstros. Enquanto houve um indígena, essa impostura não foi desmascarada; encontrávamos no gênero humano uma abstrata postulação de universalidade que servia para encobrir práticas mais realistas: havia, do outro lado dos mares, uma raça de sub-homens que, graças a nós, em mil anos talvez, teria acesso à nossa condição. Em resumo, confundíamos o gênero com a elite. Hoje o indígena revela sua verdade; de repente, nosso clube tão fechado revela sua fraqueza: não passava de uma minoria. Há coisa pior: uma vez que somos os inimigos do gênero humano; a elite exibe sua verdadeira natureza: uma quadrilha de bandidos. Quereis um exemplo? Lembrai-vos destas palavras grandiloquentes: como é generosa a França! Generosos, nós? E Sétif? E esses oito anos de guerra feroz que custaram a vida da mais de um milhão de argelinos? Mas compreendamos que não nos censuram por termos traído não sei que missão, pela boa razão de que não tínhamos nenhuma. É a própria generosidade que está em causa; essa bela palavra sonora só tem um sentido: estatuto outorgado. Para os novos homens emancipados que nos enfrentam, ninguém tem o poder nem o privilégio de dar nada a ninguém. Cada qual tem todos os direitos. Sobre todos. E nossa espécie, quando um dia se fizer a si mesma, não se definirá como a soma dos habitantes do globo mas como a unidade infinita de suas reciprocidades. Paro aqui. Concluiríeis o trabalho sem dificuldade. Basta que olheis de frente, pela primeira e última vez, as nossas aristocráticas virtudes; elas rebentam, e como sobreviveriam à aristocracia de sub-homens que as engendrou? Há alguns anos, um comentarista burguês – e colonialista – só achou isto para defende o Ocidente: “Nós não somos anjos, mas pelo menos temos remorsos”. Que confissão! Outrora nosso continente tinha outros sustentáculos: o Partenon, Chartres, os Direitos do Homem, a suástica. Sabemos agora o que valem e não pretendemos mais salvar-nos do naufrágio senão pelo sentimento muito cristão de nossa culpabilidade. É o fim, como vedes: a Europa faz água por todos os lados. Que aconteceu então? Simplesmente isto: éramos os sujeitos da história e atualmente somos os objetos. Inverteu-se a correlação de forças, a descolonização está em curso; tudo o que nossos mercenários podem tentar é retardar-lhe a conclusão.

É preciso ainda que as velhas “Metrópoles” metam o bedelho, empenhando todas as suas forças numa batalha, de antemão, perdida. Essa velha brutalidade colonial, que fez a glória duvidosa dos Bugeaud,vamos reencontra-la, no fim da aventura, decuplicada, insuficiente. Envia-se o contingente para a Argélia, e ele lá se mantém há sete anos sem resultado. A violência mudou de sentido; vitoriosos, nós a exercíamos sem que ela parecesse alterar-nos: decompunha os outros e a nós, os homens, mas nosso humanismo continuava intacto; unidos pelo lucro, os metropolitanos batizavam com os nomes de fraternidade e amor a comunidade de seus crimes. Agora, a violência, por toda parte bloqueada, volta-se contra nós através de nosso soldados, interioriza-se e nos possui. Começa a involução: o colonizado se recompõe e nós, fanáticos e liberais, colonos e “metropolitanos”, nós nos decompomos. Já o furor e o medo estão nus; mostram-se a descoberto nas “pexotadas” de Argel. Onde estão agora os selvagens? Onde está a barbárie? Não falta nada, nem mesmo o tantã. As buzinas ritmam “Argélia Francesa” enquanto os europeus queimam vivos os muçulmanos. Não faz muito tempo, lembra Fanon, psiquiatras em Congresso afligiam-se com a criminalidade indígena. Esses homens se entrematam, diziam eles, isso não é normal; o córtex do argelino deve ser subdesenvolvido. Na África central outros estabeleceram que “o africano utiliza muito pouco seus lobos frontais”. Esses sábios achariam interessante prosseguir hoje sua investigação na Europa e particularmente entre os franceses. Porque nós também, de alguns anos para cá, devemos estar sofrendo de preguiça frontal: Os Patriotas assassinam um pouco os seus compatriotas; em caso de ausência, fazem ir pelos ares o porteiro e a casa. É apenas um início: a guerra civil está prevista para o outono ou a próxima primavera. Nossos lóbulos, porém, parecem em perfeito estado. Não será que, por não poder esmagar o indígena, a violência se concentra, se acumula dentro de nós e procura uma saída? A união do povo argelino produz a desunião do povo francês: em todo o território da ex-metrópole as tribos dançam e preparam-se para o combate. O terror deixou a África para instalar-se aqui, porque há os furiosos que com toda a simplicidade querem obrigar-nos a pagar com nosso sangue a vergonha de termos sido batidos pelo indígena e há também os outros, todos os outros, igualmente culpado – após Bizerta, após os linchamentos de setembro, quem foi à rua para dizer: chega? – mas bem mais sossegados: os liberais, os duros dos duros da Esquerda mole. Neles também a febre sobe. E o mau humor. Mas que cagaço! Mascaram a raiva sob mitos, sob ritos complicados; para retardar o ajuste de contas final e a hora da verdade, puseram à nossa frente um Grande Feiticeiro cuja unção é manter-nos a todo custo na escuridão. Inutilmente; proclamada por uns, recalcada pelos outros, a violência volteia: um dia explode em Metz, no outro em Bordéus; passou por aqui, passará por ali; é o jogo do anel. Por nossa vez, passo a passo, percorremos o caminho que leva ao indigenato. Mas para que nos tornássemos inteiramente indígenas seria necessário que nosso solo fosse ocupado pelos antigos colonizados e que morrêssemos de fome. Isto não acontecerá; não, é o colonialismo decaído que nos possui, é ele que nos cavalgará dentro em breve, decrépito e soberbo; aí estão nosso zar, nossa loa. E vós vos persuadireis, lendo o último capítulo de Fanon, que é preferível ser um indígena no pior momento da miséria que um ex-colono. Não é bom que um funcionário da polícia seja obrigado a torturar dez horas por dia; nessa marcha, seus nervos ficam abalados a menos que se proíba aos algozes, em seu próprio interesse, de faze horas suplementares. Quando se quer proteger, com o rigor das leis, o moral da Nação e do Exército, não é bom que esta desmoralize sistematicamente aquela. Nem que um país de tradição republicana confie centenas de milhares de seus jovens a oficiais golpistas. Não é bom, compatriotas, vós que conheceis todos os crimes cometidos em nosso nome, não é realmente bom que não digamos nada a ninguém, nem sequer a nossa alma, por temor de termos que nos julgar. A princípio ignoráveis, concedo, depois tivestes dúvidas, presentemente sabeis, mas continuais calados. Oito anos de silêncio, isto degrada. E em vão: hoje o sol ofuscante da tortura está no zênite, alumia o país inteiro; sob essa luz não há mais um riso que soe justo, um rosto que não tria nossos desgostos e cumplicidades. Basta hoje que dois franceses se encontrem para que haja um cadáver entre eles. E quando eu digo: um… A França, outrora, era o nome de um país; tomemos cuidado para que não seja em 1961 o nome de uma neurose.

Nós nos curaremos? Sim. A violência como a lança de Aquiles, pode cicatrizar as feridas que ela mesma fez. Hoje estamos agrilhoados, humilhados, doentes de medo, arruinados. Felizmente isso ainda não é suficiente para a aristocracia colonialista; ela não pode concluir sua missão retardadora na Argélia enquanto não tiver primeiro acabado de colonizar os franceses. Recuamos cada dia diante da luta, mas ficai certos de que não a evitaremos: os matadores precisam dela e vão precipitar-se sobre nós e moer-nos de pau. Assim terminará o tempo dos feiticeiros e dos fetiches: ou nos bateremos ou apodreceremos nas prisões. É o momento final da dialética: condenais esta guerra mas ainda não ousais declarar-vos solidários com os combatentes argelinos; eles vos obrigarão a lutar. Talvez então, levados à parede, desenfreareis enfim essa violência nova que velhos crimes requentados suscitam em vós. Mas isto, como dizem, é outra história. A do homem. Aproxima-se o tempo, estou certo disso, em que nós nos juntaremos àqueles que a fazem.

(Setembro de 1961)

SARTRE, Jean-Paul. Prefácio. In FANON, Frantz. Os condenados da terra. 1a Edição. Tradução José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1968, Página 3-21.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

RACISMO E DOMINAÇÃO PSÍQUICA EM FRANTZ FANON Por Thiago C. Sapede

Racismo e Dominação Psíquica em Frantz Fanon
Artigo publicado originalmente em Sankofa, Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana

Ano IV, Nº 8, Dezembro/2011

Dossiê – II Seminário Sankofa

“Descolonização e Racismo: atualidade e crítica”

“Racismo e dominação Psíquica em Frantz Fanon”


Thiago C. Sapede[1]

Este trabalho pretende explorar as ideias do psiquiatra Frantz Fanon sobre o colonialismo, focando-se na esfera psicológica da dominação colonial. Este autor enxerga o racismo como elemento central, operador psíquico da dualidade entre colono e colonizador, branco e negro, no colonialismo. Esse sistema profundo e complexo será observado como alicerce fundamental para a empreitada colonial e a manutenção da dominação europeia sobre “outros” povos. Esta discussão será importante para compreensão do racismo como elemento fundante do processo histórico de construção do ocidente.

Frantz Fanon nasceu em 1925, na ilha da Martinica, colônia francesa desde o século XVII. Era uma ilha povoada majoritariamente por descendentes de africanos escravizados. Aos dezoito anos, Fanon alistou-se no exército francês durante a segunda guerra mundial, lutando no norte da África. Após o fim da guerra, partiu para a França, buscando estudar medicina em Lyon. Fanon recebeu diversas influências intelectuais em sua temporada na França. Dialogou intensamente com o movimento da Negritude, sobretudo com seu conterrâneo Aimé Cesaire e o senegalês S. Senghor. Sua interlocução com Jean-Paul Sartre foi também relevante. Recebeu influência decisiva teórica da psicanálise, muito em voga na França no período, com os seminários de Jacques Lacan. Logo após formar-se em psiquiatria foi trabalhar na Argélia, onde se tornou importante ativista na luta de libertação argelina.

Seus trabalhos fundamentais foram “Pele Negra, Máscaras Brancas”, de 1952 - que escreveu inicialmente como tese para habilitar-se em psiquiatria, mas foi recusado -, e “Os condenados da Terra” de 1961[2]. Abordarei aqui uma das facetas do trabalho de Fanon sobre o colonialismo: a esfera psicológica, dando ênfase à questão do racismo. “Pele Negra, Mascaras Brancas” será nossa principal fonte, pois dialoga mais intensamente com os objetivos desta pesquisa.

Tratarei inicialmente da conceituação de Fanon do termo racismo, feita através do debate com outro psiquiatra estudioso das relações coloniais, Octave Manonni.

Manonni abordou o racismo colonial como uma atitude de indivíduos ou classes específicas. Estudando o caso da África do sul, afirmou que o proletariado branco (que competia por trabalho com africanos diariamente) assumia uma postura muito mais racista do que a elite colonial. Defendeu assim a possibilidade de existirem diversos “graus” de racismo, dependendo do tipo de exploração e da cultura local. Em Manonni, o “racismo” aparece numa concepção mais elástica e superficial, vinculado às atitudes discriminatórias que nascem da “cultura” de uma classe social ou de um povo. O tipo de exploração colonial, para ele, portanto, difere dos outros tipos de exploração. Assim como o racismo colonial não se equivale a outras formas de racismo[3].

A partir das críticas às ideias deste autor, Fanon coloca-se num polo oposto. Para ele, o proletariado branco da África do Sul é racista não por uma especificidade cotidiana ou cultural, mas pelo fato do racismo existir como elemento estrutural na sociedade sul-africana. Tratar-se-ia de uma estrutura muito profunda, que envolve as esferas econômica, social e psicológica. Dentro dessa concepção, uma sociedade que é racista é racista por inteiro, não dependendo dos setores sociais ou culturais nos quais a discriminação emergirá com mais evidência. As atitudes de discriminação diretas são apenas sintomas de um sistema muito mais profundo.

Para Fanon, portanto, aqueles que assumem uma atitude discriminatória não são necessariamente mais racistas do que àqueles que assumem o papel de cumplices passivos dessas ações. A discriminação direta seria apenas a “ponta do iceberg”.

Essas idéias apresentada por Fanon como contraponto a Manonni, não foram inéditas quando apresentadas. Ele recebeu influência significativa das discussões sobre o racismo feitas por Sartre, que tratou profundamente do antissemitismo europeu em Reflexões sobre o racismo. Afinal, Sartre já trazia, ali, a noção de racismo como fato estrutural da sociedade. Veremos que a novidade em Fanon será levar esta tese sartriana para o campo psicológico e para a sociedade colonial. 

O autor, após desmontar as ideias de Manonni, apresenta seu ponto de partida, bastante incisivo: “Dizíamos a pouco que a África do Sul tem uma estrutura racista. Agora vamos mais longe, dizendo que a Europa tem uma estrutura racista”[4].

Apoia esta afirmação no fato do europeu ter no inconsciente da coletividadeo que chama de “complexo de autoridade”. Ou seja, a ideia de si mesmo como um tipo superior de homem.

Fanon diz:

“Há na Martinica duzentos brancos que se julgam superiores a trezentos mil elementos de cor. Na África do Sul devem existir dois milhões de brancos para aproximadamente treze milhões de nativos, e nunca passou pela cabeça de nenhum nativo sentir-se superior a nenhum branco.”[5]

Através do complexo de autoridade, justifica-se a sujeição de outros grupos humanos, nascendo também a necessidade de classificação e hierarquização dos mesmos em “raças” ou etnias. A partir desta demanda, segundo Fanon, é criada a idéia do “negro”, pela dicotomia com o branco. Afirma que: “Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado”.[6]

Apesar de Fanon não tratar dessa invenção do negro na temporalidade histórica, ele parece abordá-la no contexto da colonização da era industrial. Sabemos, porém,que desde finais do século XV, nos primeiros contatos de portugueses com populações africanas na costa atlântica, os europeus já se referiam aos africanos como pretos ou negros. A questão central é que esta “marca” não ocupava a posição central, que ganhoua partir do século XIX.

A expansão européia do início da época moderna tinha na raiz de seu discurso de legitimidade a salvação das almas e a expansão da fé. Nesta argumentação era Deus o legítimo senhor de todas as terras do mundo e responsável por todas as almas. A Igreja e o papa eram os legítimos representantes de Deus. Por isso, a eles cabia decidir o futuro dos gentios e hereges do Novo Mundo. A tutela dessas almas foi oferecida às monarquias ibéricas, que, explorando seus corpos, lhes ofereceriam a vida eterna.

Após uma época de intensas mudanças históricas e culturais, o homem europeu supôs-se racional. Os estados tornaram-se laicos, e a civilização passou a ocupar o valor máximo em lugar da salvação. A hierarquia entre as sociedades, que tinha como critério o plano divino, passou ao próprio corpo e à cultura. Nesse movimento, o europeu se desvinculou de Deus e se tornou ele próprio um semi-deus entre os homens.

Voltando à Fanon, notamos que a partir da relação de sujeição dos colonizados aos colonos europeus estabelece-se o que o autor chama de um duplo narcisismo. Neste, o “branco está preso em sua branquitude e o negro está preso em sua negritude”[7]. A representação de si dentro dessas categorias se constrói na relação de oposição ao outro. Ou seja, para Fanon, dentro desse sistema, resta apenas uma alternativa ao colonizado que deseja se valorizar: ocupar o lugar do outro, pois só o outro pode ser completo. O negro deve tentar sob todo custo tornar-se branco[8]. 

Essa negação de si coloca o colonizado numa posição neurótica, num confronto psíquico contra si próprio e como consequência nasce nele um “complexo de inferioridade”. É justamente deste complexo que o colonialismo europeu se apropria e deste se alimenta. 

O “complexo de inferioridade” do colonizado começa, para Fanon, na infância, uma vez que há uma divergência profunda entre o universo infantil das referências familiares e o universo público, marcado pela dominação e tutela europeia.

Para uma criança européia, que sai do ambiente doméstico para o público, há uma coerência entre a as figuras do universo familiar (alicerces da psiquê) e os símbolos coletivos e nacionais. As referências coletivas, para o branco, falam sobre sua família, seus pais e sobre ele próprio. O mesmo não ocorre com o colonizado, como nos diz Fanon:“Uma criança negra, normal, tendo crescido no seio de uma família normal, ficará anormal ao menor contato com o mundo branco.” [9]

Há três elementos essenciais para o sistema de referências do inconsciente da coletividade[10] que criam essa cisão. O primeiro deles é a Nação, que se manifesta através de um conjunto de símbolos: heróis nacionais, a história nacional, o exército, o líder político, entre outras. Estes são, segundo Fanon, figuras associadas à paternidade. Para a criança negra martinicana, impõem-se referências européias, incoerentes com as de seu inconsciente. Além disso, os colonos são aqueles que têm prestígio social, poder e riqueza, reproduzindo cotidianamente a superioridade do branco.

Por último, Fanon aborda outro elemento decisivo no universo de referências infantis e juvenis, que em sua época eram as Revistas ilustradas. Este material ocupava o papel que hoje ocupam os programas de TV, animações e os videogames. Sobre as quais afirma:

“Em toda a sociedade, em toda coletividade, existe e deve existir um canal, uma porta de saída pela qual as energias acumuladas, sob forma de agressividade, possam ser liberadas. (...)É isso que tendem os jogos para crianças (...)e de modo mais geral as revistas ilustradas para os jovens ,-cada tipo de sociedade exigindo, naturalmente, uma forma de catarse determinada.

As histórias de Tarzan, dos exploradores de doze anos, de Mickey e todos os jornais ilustrados tendem a um verdadeiro desafogo da agressividade coletiva. São jornais escritos pelos brancos e destinados às crianças brancas. Ora, o drama está justamente aí. Nas Antilhas-e outras colônias- os mesmo periódicos ilustrados são consumidos pelos jovens nativos. E o Lobo, o Diabo, o Gênio do mal, o Mal, o Selvagem são sempre representados por um preto ou um índio. E como sempre há identificação com o vencedor, o menino negro torna-se (em suas fantasias) o explorador, aventureiro, missionário ´que corre o risco de ser comido pelos pretos malvados tanto como o menino branco.” [11]



Vemos, portanto, que o universo de referências de uma criança negra, num ambiente colonial não o enxerga. E, quando o faz, sua imagem é inferiorizada ou negativa. As consequências psíquicas dessa ruptura são significativas, como nos mostra Fanon:

“Qual é nossa proposição? Simplesmente esta: quando os negros abordam o mundo branco, há uma certa ação sensibilizante. Se a estrutura psíquica se revela frágil, tem-se um desmoronamento do ego. O negro cessa de se comportar como indivíduo acional. O sentido de sua ação estará no Outro(sob forma do branco), pois só o Outro pode valorizá-lo”[12].

Voltemos à interlocução que Fanon estabelece com Sartre num aspecto importante da operação do sistema racista: a construção dos estereótipos.

Sobre a inferiorização do judeu, Sartre afirmou:

“O judeu é um homem que os outros consideram judeu: eis a verdade simples de onde deve se partir: é o anti-semita que faz o judeu” [13]. 

Após expor a interessante construção sobre a questão judaica na mentalidade européia, feita através do trabalho de Sartre, Fanon busca compreender a construção dos estereótipos sobre o negro, afirmando:

“Tem-se medo do judeu por causa do seu potencial apropriador. ´Eles estão por toda a parte, infestam os bancos, bolsas, o governo. Reinam sobre tudo. Em pouco tempo o país lhes pertencerá. (...)’Quanto aos negros...... eles têm a potência sexual. Pensem bem, com a liberdade que tem em plena selva! Parece que se deitam em qualquer lugar e qualquer momento. Eles são genitais.” [14] 



Nesta formulação apresentada de modo provocativo, por Fanon, ambos judeus e negros ameaçam a sociedade europeia branca; o judeu representa o perigo intelectual e o negro o perigo biológico. Basta observar-se os paralelos estabelecidos pela mentalidade racista europeia, associando Judeus e Negros a diferentes espécies animais: estratégia muito eficaz de rebaixamento de seu status de humanidade. O judeu foi chamado de Rato: animal sorrateiro, esperto, que se escondem nos porões para roubar; um mal quase invisível. O negro por sua vez foi associado ao macaco, animal fisicamente forte e ágil, podendo ser potente, violento e brutal, como suposto no caso dos gorilas.

A conceituação pela mentalidade européia da inferiorização do negro terá como critério fundante, como vimos, a vinculação direta entre o negro e a potência sexual, corpórea e biológica. Constrói-se desta forma uma categoria de ser humano menos “civilizados” na medida em que, ao contrário dos europeus, são reféns dos impulsos: impulsos de agressividade, impulsos musculares e sobretudo impulsos sexuais.

O autor observa mais profundamente as atitudes discriminatórias do europeu ao negro por essa perspectiva. Fanon chama esta discriminação de “negrofobia”. Devemos lembrar que o termo “racismo”, comumente é usado como sinônimo de discriminação, aqui é muito mais amplo, significando: sistema que opera em toda a sociedade. 

Para Fanon, a atitude discriminatória da mulher branca em relação ao negro (sobretudo o homem negro) seria provocada por uma inquietação sexual, uma relação dupla de fobia e desejo. Por serem as negrófobas, em geral, mulheres sexualmente frustradas, atribuem ao homem negro poderes sexuais capazes de superar suas mazelas. A simples presença do negro, para estas mulheres, produz um sentimento fóbico, e a atitude violenta é uma resposta repressora ao seu desejo[15].

Para homens negrófobos, por sua vez, Fanon apresenta duas possibilidades interessantes. Na primeira, o negro representaria um terrível concorrente para o branco, por acreditarem ele ser dono de uma potência que nunca poderiam atingir. Daí causando um sentimento de inferioridade. O inseguro ou impotente sente-se ameaçado diante da potência e virilidade que atribui ao outro. Há uma segunda possibilidade, na qual o branco discrimina o negro, pois diante dele evidencia-se seu recalque sexual. Ou seja, age com violência contra um objeto de desejo como negação da própria homossexualidade não-aceita. Baseado nessas hipóteses, Fanon cunha o termo “vingança sexual” que, para ele, gera a perseguição aos negros:

“O linchamento do negro não seria uma vingança sexual? Sabemos tudo o que as sevícias, as torturas, os muros, comportam de sexual. Basta ler Marquês de Sade para nos convencermos. ..A superioridade do negro é real? Todo mundo sabe que não. Mas o importante não é isso. O pensamento pré-lógico do fóbico decidiu que é assim” [16]

A vinculação estereotípica do negro ao corpo deriva do “complexo de autoridade” europeu, pelo qual afirma a racionalidade como valor maior humano. O colonizador se auto-constrói como ser racionalmente superior aos outros. Desta forma depositam no Outros atributos corporais regidas pelo instinto: como a agilidade, a força, potência e sensualidade, numa dupla estratégia de desumanização do outro e super-humanização de si. 

Em “Os condenados da terra” Fanon tratou de maneira mais concreta das relações de dominação no seio da colonização, apresentando a montagem das estruturas de dominação sociedade colonial para além da esfera psíquica. No ambiente colonial o nativo encontra-se confinado e restrito. O espaço físico a ser ocupado pelo colonizado é restrito e determinado, e deve se dar por moldes metropolitanos, regido pelas elites coloniais.

Na cidade colonial, o lugar do colonizado são os guetos e periferias, bairros sujos e mal estruturados. Enquanto isto, o colono tem acesso à cidade central e moderna, na qual circula sem restrição. A polícia e o exército metropolitano, detendo o monopólio da força, são essenciais para assegurar a demarcação desses espaços[17].

Fanon vê como consequência dessa restrição forçada uma repressão de energias musculares. O colonizado, constantemente vigiado, torna-se na relação com o colono muscularmente restrito, seus movimentos são atentamente observados. A energia muscular, porém, terá vazão por outras vias, como aponta Fanon:

“Esse é o mundo colonial. O indígena é um ser confinado(...)a primeira coisa que o indígena aprende é ficar no seu lugar ,a não passar dos limites. É por isso que os sonhos do indígena são sonhos musculares, sonhos de ação, sonhos agressivos. Durante a colonização, o colonizado não para de libertar-se entre as nove horas da noite e a seis da manhã. ”[18]

Além dos sonhos, objeto essencial ao acesso do inconsciente pelos psicanalistas, Fanon aponta para explosões musculares desproporcionais como forma de vazão dessa energia reprimida. A dança, a sexualidade e a possessão, os esportes, entre outros, tornam-se veículos fundamentais de liberação energética. A violência, porém, torna-se para Fanon a via por excelência de descarga energética. Essas explosões de violência se darão sobre tudo longe da vigilância dos colonos, ou seja, entre os próprios colonizados. Esse fenômeno é chamado pelo autor de “autodestruição” do colonizado, que causará violência endêmica nos bairros periféricos.

Desta maneira, o colonizado acaba inevitavelmente reafirmando os estereótipos raciais cunhados pelos colonos. Ele se torna corporal, violento e explosivo, alimentando assim o sistema racista que o desumaniza.

Observamos na obra de Fanon, principalmente em “Pela Negra, Máscaras brancas” um tom muito direto e as vezes quase individual se dirigindo ao colonizado. Em diversas sentenças “o negro” aparece como o sujeito gramatical, agente em relação aos termos de sua exclusão. Fanon, como bom Lacaniano, não utiliza a linguagem de maneira arbitraria. Esta atitude é coerente com a ideia do autor de que o negro deve ser responsabilizado pelas consequências mentais da exclusão colonial.

Não se trata, obviamente, de culpá-lo pelas consequências psicológicas de sua exclusão, mas trata-se de mostrar ao excluído que os “termos” produzidos por esse sistema lhe pertencem.

Não por acaso, para Lacan, os sujeitos psíquicos devem ser sempre responsáveis. Os fatores sócio-políticos e culturais que produzem consequências psíquicas podem ser externos aos sujeitos, mas nunca externos ao indivíduo. Em outras palavras, na medida em que um sistema de injustiças é internalizado por sua “vítima”, ele se torna parte dela e só pode ser terapeuticamente tratado se vinculado pela ação do sujeito[19].

O indivíduo, portanto, para a psicanálise, só pode superar uma questão (patológica, por exemplo) que está em si, na medida em que se responsabiliza por ela. Um paciente, ao ser tratado como “não sujeito” passa a ser tutelado e alienado, tornando-se sempre dependente, sem possibilidades de emancipação.

Em outras palavras, para a retórica fanoniana, o indivíduo negro não deve assumir a posição de vítima diante daquilo que o vitimiza, e sim de sujeito.

Vejamos mais claramente essa ideia nas palavras do autor:

“(...) fazendo apelo à humanidade, ao sentimento de dignidade, ao amor, à caridade, seria fácil provar ou forçar a admissão de que o negro é igual ao branco. Mas nosso objetivo é outro. O que nós queremos é ajudar o negro a se libertar do arsenal de complexos germinados no seio da situação colonial.”[20]

As obras de Fanon não têm, evidentemente, apenas pretensões terapêuticas. Seus livros não são direcionados somente a psicanalistas que trabalharam com a saúde mental do negro; tampouco são obras de auto-ajuda. Fanon pretende, ao contrário, que através da tomada de consciência do complexo de inferioridade, nasça um potencial pela reivindicação e pela superação do sistema colonial e racista.

O método psicanalítico, em Fanon, é ferramenta para a libertação. Através dele se recusa uma descolonização pela tutela européia ou pela burguesia nacional europeizada. Aqui, a “responsabilização” e lutados próprios colonizados são a única via para uma verdadeira emancipação.

Como vimos, Frantz Fanon , através de sua obra seminal, apresenta o racismo como sistema complexo que cumpriu duplamente os papeis de motor e combustível da expansão europeia e do colonialismo. Sua obra escancara a profundidade das raízes racistas na construção da sociedade ocidental e nos mostra que não há alternativas efetivas para solução dessa questão que não sejam em si também profundas e radicais.


[1]Mestrando em História Social pela FFLCH-USP, pesquisa intitulada “Catolicismo e Poder Político no Reino do Congo. Século XVIII” orientando da Profa. Dra. Marina de Mello e Souza. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Membro do Núcleo de Estudos de África, Colonialidade e Cultura Política (NEACP-DH-USP).


[2]Fanon, Frantz. Pele Negra, Mascaras Brancas. Salvador, Edufba, 2008. E Fanon, Frantz. Os condenados da Terra. Juíz de Fora. Editora Ufjf. 2010.


[3]Fanon, Frantz. Op. Cit, 2008, p 85.


[4] Fanon, Frantz. Op. Cit, 2008, p 89.


[5] Fanon, Frantz. Op. Cit, 2008, p 90.


[6] Fanon, Frantz. Op. Cit, 2008, p 90.


[7] Fanon, Frantz. Op. Cit, 2008, p 27-30.


[8] Fanon. Op. Cit, 2008, p 94.


[9] Fanon. Op. Cit, 2008, p 94.


[10] Fanon parece utilizar o termo “inconsciente da coletividade” como alternativa à “inconsciente coletivo” conceituado por Jung. Pois há divergências entre a abordagem lacaniana de inconsciente individual utilizada por ele e a jungiana de “inconsciente coletivo” inexplorada pelo autor. Compreendermos que Fanon privilegia os aspectos culturais “mentais” da coletividade, em detrimento dos arquétipos que ocupam centralidade na teoria de Jung.


[11] Fanon. Op. Cit, 2008, p 130-131.


[12] Fanon. Op. Cit, 2008, p 136.


[13] Fanon. Op. Cit, 2008, p 130-131.


[14] Fanon. Op. Cit, 2008, p 130-131.


[15]Fanon. Op. Cit., 2008, p 132-140.


[16] Fanon. Op. Cit., 2008, p 139.


[17] Idem, Os condenados da Terra. Juíz de Fora: Editora Ufjf. 2010, p. 50-65.


[18] Idem, Op. Cit. 2010, p. 69.


[19] Lacan, J. – La Science et la vérité, in Écrits, Paris, Edition du Seuil, 1966, p. 858.


[20] Fanon, Op. Cit., 2008.



RacismoedominaçãoPsíquicaemFrantzFanon.pdf
(138k)

DISQUS NO FYADUB | FYASHOP

O FYADUB | FYASHOP disponibiliza este espaço para comentários e discussões das publicações apresentadas neste espaço. Por favor respeite e siga o bom senso para participar. Partilhe sua opinião de forma honesta, responsável e educada. Respeite a opinião dos demais. E, por favor, nos auxilie na moderação ao denunciar conteúdo ofensivo e que deveria ser removido por violar estas normas... PS. DEUS ESTÁ VENDO!