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sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

MARCUS GARVEY - TRAIDORES


Comprar na Amazon: Philosophy and Opinions of Marcus Garvey [Volumes I & II in One Volume] 

Na luta para chegar ao topo, os oprimidos sempre foram sobrecarregados pelos traidores de sua própria raça, compostos por pessoas de pouca fé e por aqueles que geralmente são suscetíveis de suborno pela venda dos direitos de seu próprio povo. Como pretos não estamos totalmente livres de tal ônus. Para ser franco, acredito que estamos mais sobrecarregados dessa maneira (da traição) do que qualquer outra raça no mundo, devido à falta de treinamento e preparação para nos adaptar para nosso lugar no mundo entre nações e raças. O traidor de outras raças geralmente se limita aos indivíduos medíocres ou irresponsáveis, mas, infelizmente, os traidores da raça preta geralmente são encontrados entre os homens nos mais altos cargos, colocados na educação e na sociedade, são os companheiros que se autodenominam líderes. 

Para examinarmos a nós mesmos como um povo, descobriremos que temos mais traidores do que líderes, porque quase todo mundo que ensaia para liderar a raça preta nesse momento é o primeiro a se estabelecer como animal de estimação de algum filantropo de outra raça. a quem ele vai degradar sua raça da pior forma, humilhar sua própria masculinidade, e assim, conquistar a simpatia do "grande benfeitor", que ditará a ele o que deve fazer na liderança da raça negra. É geralmente “Você deve sair e ensinar seu povo a ser manso e humilde; diga-lhes para serem bons servos, leais e obedientes a seus senhores. Se você lhes ensinar tal doutrina, sempre poderá depender de mim para lhe oferecer US$ 1.000 por ano ou US$ 5.000 por ano para te apoiar, ou o jornal ou a instituição que você representa. Eu sempre o recomendarei aos meus amigos como um bom companheiro, que está agindo bem”. 

Com esse conselho e perspectiva de patrocínio, o líder preto comum sai para liderar a massa infeliz. Esses líderes nos dizem o quão bom é o Sr. 'Assim que foi Assim que é', quantos bons amigos temos na raça oposta, e que se deixarmos tudo para eles, tudo funcionará bem. Esse é o tipo de liderança que temos tido nos últimos cinquenta anos. Não é outra coisa senão traição, e traição do pior tipo. O homem que comprometerá a atitude de seu país é um traidor, e mesmo assim o homem que comprometerá os direitos de sua raça não pode ser classificado de outra maneira senão o de um traidor também. 

Até que nos estabeleçamos como quatrocentos milhões de pessoas, e que os homens que se colocam à nossa frente percebam que estamos com nojo e insatisfeitos, e que teremos uma liderança própria e a manteremos quando a conseguirmos, assim poderemos nos elevar dessa lama de degradação para o mundo. chegaremos as alturas da prosperidade, liberdade humana e apreciação humana.

Marcus Garvey, Philosophy and Opinions; para ler gratuitamente em inglês http://marcusgarvey.com/?p=255. Tradução e Adaptação: Ras Wellington

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segunda-feira, 26 de setembro de 2016

"ELE ERA DA CASA REAL DA ETIÓPIA" - A OBRA DE JORGE BEN E O FLUXO DE IDEIAS E INFLUÊNCIAS NOS DOIS LADOS DO ATLÂNTICO NEGRO


Jorge Benjor é um dos artistas com uma das carreiras mais longevas da chamada MPB, pois seu primeiro álbum foi lançado em 1963 e até presente o momento este cantor e compositor continua em atividade. Jorge é bastante conhecido por canções alegres e positivas, como País Tropical, ou composições de temática lírico amorosa como Chove Chuva. Entretanto, menos conhecidas em seu cancioneiro são as canções em que aciona uma identidade negra orgulhosa calcada em uma ancestralidade africana.

Em 1976, Jorge Ben 2 lança África-Brasil, um de seus mais famosos álbuns. Não por acaso fazem parte deste trabalho canções como Cavaleiro do Cavalo Imaculado, Xica da Silva, Ponta de lança africano (Umbabarauma) e a canção-título do Long Play. 3

Em 2010, uma nova versão de Umbabarauma 4 é lançada, desta vez em parceria com artistas mais jovens como Mano Brown, Céu e Thalma de Freitas. Junto com a canção os produtores lançam um documentário contando o percurso desta regravação. Neste, Jorge explica a razão de ter dado este nome ao álbum:

“Eu participei de um festival na Argélia e (...) participei várias vezes de festival da juventude e eu ficava assim intrigado porque eu era o único músico brasileiro a ser chamado num festival de música africana. Eles falavam que gostavam do meu estilo de tocar, do suingue da música, da maneira de tocar o violão e a guitarra, porque era tudo percussivo e eu era convidado por isso e eu quis fazer essa homenagem... Esse disco”. 5


Pelas matérias de jornais e revistas da época, não foi possível localizar uma referência a este festival que Jorge menciona antes de 1976, quando lançou o álbum. Entretanto há sim referência a uma apresentação de Jorge na Argélia em 1985. É possível que tenha se apresentado antes de 1976 neste país como também é possível que se trate de um “deslocamento de memória”, ou seja, que o artista deslocou no tempo os acontecimentos num processo muito comum as memórias coletivas e individuais. Como nos lembra Alessandro Portelli, ao analisarmos as narrativas que os sujeitos constroem para si, é preciso atentar para o fato de que nem sempre nos deparamos com “o que a pessoa de fato fez, mas o que ela queria fazer e o que ela pensava estar fazendo”(PORTELLI: 1991,06). Tais relatos são muito mais subjetivos do que fáticos, o que não é um problema metodológico. O que importa neste caso não é data exata em que Jorge de fato foi à África, mas sim a sua intenção de fazê-lo. 6 O jornal O Globo em 1985 noticiou o recebimento de um telex do embaixador Leite Ribeiro, da Argélia: É com grande alegria que levo a você meu depoimento entusiasmado sobre o grande sucesso de Jorge Ben e da Banda do Zé pretinho no Festival da Juventude. Conhecido pelos especiais (...) de televisão e por seus discos, que com frequência são vistos e ouvidos na Argélia, aquele bom artista brasileiro (...) conseguiu conquistar este público, com sua primeira apresentação ao vivo, concorrendo com isso, para afirmar ainda mais a boa imagem do Brasil. 7

Em todo caso, há uma notícia de 12/03/1974 do Jornal O Globo que indica que o artista ganhou de presente da gravadora, por conta dos seus seus 10 anos de carreira, uma viagem ao continente africano, mais especificamente à Etiópia “para conhecer seus parentes”. 8 Visitar a terra de sua mãe é algo que sempre esteve no horizonte deste artista. Em 1970, Jorge Ben já dizia que pretendia viajar para “pesquisar” ritmos etíopes. 9 Esta ancestralidade africana, etíope, aparece em diversas de suas composições como em Criola, onde Jorge diz sua mãe é “filha de nobres africanos”. Izabel Guillén aponta como os ancestrais são importantes na construção da identidade dos sujeitos negros, como são exemplos a serem seguidos nas lutas cotidianas, no combate ao racismo e na busca por uma sociedade mais justa para negros e negras (GUILLEN: 2013, 01-02). O nome que este cantor e compositor escolheu usar em sua carreira artística também evidencia esta intenção de reverenciar seus ancestrais: Jorge Ben é a inversão do nome de seu avô etíope, Ben Jorge, como declarou em 1963 à Revista do Rádio. 10 Nesta mesma ocasião é questionado sobre seu estilo musical e mais uma vez se remete as suas origens: “Dizem que se chama ‘afro-bossa-nova’”. 11



Em entrevista a revista Trip em 2009, Ben fala sobre sua família:

"Minha ascendência por parte de mãe é etíope. Agora, por parte de meu pai, é uma mistura de europeus. A família toda dele é branquinha, minha vó era branca, dizem que era austríaca. Meu pai era moreno, nasceu no Brasil já misturado. O resto da família é tudo claro, e eu sou mesclado porque misturou com minha mãe, a África." 12

Jorge, neste caso, está aludindo à formação miscigenada do povo brasileiro para construir uma determinada auto representação. Embora esta ideia de miscigenação do africano, do europeu e do indígena ressoe em Jorge Ben e ele a acione eventualmente, A narrativa que permeia suas canções de maneira mais forte é a da sua identidade negra. Alessandro Portelli nos ajuda a pensar sobre as definições de mito. Para ele o mito não seria:

(...) necessariamente uma história falsa ou inventada: é, isso sim, uma história que se torna significativa na medida em que amplia o significado de um acontecimento individual (factual ou não), transformando-o na formalização simbólica e narrativa de auto representações partilhadas por uma cultura (PORTELLI: 1991, 120-121)

Assim o fato de o artista afirmar ser descendente de africanos e de europeus está em consonância com esta representação mítica coletiva brasileira. Esta narrativa construída pelo cantor de modo algum é falsa, entretanto é bastante significativa. A ancestralidade africana, essa ideia de “Mãe África”, é evocada constantemente pelo artista e ressoa de modo mais forte em suas composições. Segundo entrevista do ano de 1995 a TV Cultura, Jorge declarou ter tido contato direto com essa herança musical:

Eu queria falar disso também... Por parte da minha mãe... Muito, muito... Porque eu ouvi muito, muita música etíope, cantos etíopes através da minha mãe, com batuques dos parentes. Eu era menino, criança, eu ouvia um som, eles falavam numa língua que eu não entendia e o batuque e isso foi misturando tudo. 13


É importante assinalar que quando se refere à Etiópia, a terra de sua mãe, Jorge está se referindo a um país com características únicas naquele continente. Este Estado foi o único país africano a rechaçar com sucesso o ataque de uma nação europeia em finais do século XIX. Naquele contexto, em que as ideias imperialistas vigoravam, os Estados do “velho mundo” se lançaram ao continente africano em busca de territórios onde pudessem ter um mercado consumidor exclusivo e ao mesmo tempo garantir o fornecimento de matérias primas. Desta forma, em um contexto onde o “continente negro” encontrava-se “loteado” entre países como França, Inglaterra, Bélgica, entre outros, a Etiópia conseguiu resistir e vencer uma invasão italiana ao seu território. Além disso, o povo etíope se orgulha de ser detentor de tradições milenares: os soberanos etíopes descenderiam do Rei Salomão e da Rainha de Sabah. Desta união teria nascido Menelik, o primeiro imperador etíope. 


A primeira guerra ítalo-etíope aconteceu em 1896. A vitória dos abissínios, nome pelo qual também é conhecido aquele povo, sobre os italianos se deu na batalha de Adua, quando 100 mil soldados africanos venceram os 16 mil invasores, sagrando o “negus” (imperador) Menelik II vencedor e chamando a atenção do mundo para o Império Negro. É sucedido por seu neto Ilyasu V, entretanto este é deposto por um conselho de nobres por conta da suspeita de ter se convertido ao islamismo. Assume como imperatriz Zewditu, filha de Menelik II e como regente, o Rás (príncipe) Tafari, em 1917, o esposo de outra das filhas do imperador falecido. Com o falecimento da imperatriz em 1930, Rás Tafari assume como Haile Selassie (“O poder da divina trindade”), cujos títulos eram Sua Majestade Imperial, Imperador Haile Selassie, Eleito de Deus, Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Leão Conquistador da Tribo de Judá. O “Negus Tafari” buscou dar continuidade a obra de Menelik II de afirmar a Etiópia como uma grande nação (LOPES: 2006, 319, 435 e 559). 14


No Brasil, e não só, a Etiópia era uma importante referência positiva para os sujeitos negros, pois foi o único país africano não envolvido no tráfico europeu de escravos e que em um primeiro momento venceu o colonialismo. Em São Paulo, um dos mais antigos órgãos da imprensa negra paulista foi O Menelick, fundado em 1915, cujo nome era uma homenagem ao imperador etíope que antecedeu Tafari Makonen (LOPES: 2006,345). Este último é também um importante modelo para os sujeitos negros da Diáspora. De acordo com os ideais do panafricanismo, formulados pelo jamaicano Marcus Garvey, o povo da Etiópia era considerado um povo eleito por Deus, por conta desta crença de que descendem da Rainha de Sabá, cuja ascendência remete à Cam e, portanto, ao Noé bíblico. 15 O garveysmo, por volta de 1925, profetizava o surgimento de um messias na Etiópia que viria a salvar todo o povo negro. Seus seguidores associaram esta figura a Haile Selassie quando este subiu ao trono em 1930. Destas associações e rearticulações do garveysmo e dos princípios da Igreja Ortodoxa Etíope surgiu o rastafarianismo, uma doutrina filosófico-religiosa cujo principal personagem é o Ras Tafari. 


Por conta da constante reverência que Jorge presta a sua ascendência Etíope, eventualmente Jorge é caracterizado por jornalistas, críticos e pelo público como “herdeiro direto da música africana”. 16 Em outro caso chegou a ser classificado como descendente da “família real da Etiópia”, uma caracterização anedótica feita pelo rapper Mano Brown:

Fazia muito baile na nossa casa lá. Baile e samba. E no baile e no samba ouvia-se e tocava Jorge Ben. Tinha uma lenda [entre seus familiares] que ele era um príncipe. ‘Não, ele é filho de um príncipe. Alguma coisa ele é’ [diziam] (...) ‘Ele é um príncipe Etíope’. Tinha gente que achava que ele era da família real da Etiópia. 17

Selassie também é tema de uma canção de Jorge em que se refere à terra de sua mãe. Nesta composição o imperador é caracterizado como “Leão de Judá” e descendente da rainha de Sabá. 18


Neste fluxo de idas e vindas do Atlântico Negro (GILROY: 2001) é necessário lembrar também do Caribe. Após a visita de Haile Selassie à Jamaica em 1966 cresce o rastafarianismo naquela ilha. Tal doutrina influenciou fortemente o grupo The Waillers, do qual fazia parte Bob Marley. Este cantor jamaicano musicou quase que literalmente um discurso de Selassie a ONU em 1968 na canção War (1976), onde critica o colonialismo e o racismo: “Until the philosophy which hold one race/ Superior and another inferior/ Is finally and permanently discredited and abandoned/ Everywhere is war, me say war”. 19

Bob Marley influenciou outros artistas negros ao redor do mundo, incluindo Gilberto Gil que no final dos anos 1970 começou a introduzir algumas influências de Reggae em sua estética sonora.

As guerras de libertação nos países africanos e a luta contra o apartheid da África do Sul também ecoaram na obra de Tim Maia que em 1976 gravou a canção Rodésia: Em Guiné-Bissau/ Não está legal/ Muito menos na Rodésia/ África do Sul/ Pegue o sangue azul/ Mande para as cucuias/ Só assim vão ver/ Que o preto é bom/Mas é valente também (...). 20 Maia cantou não só a África que “chega” no Brasil, mas o Brasil que “vai” à África.

Um pouco antes do álbum em que Rodésia foi lançada, o cantor Sebastião Rodrigues Maia lançou dois álbuns na chamada “fase racional”. Neste período, o artista era adepto da doutrina filosófico-religiosa “cultura racional”. No seu álbum Racional vol.2, o artista comemorava a difusão desta doutrina nos países africanos lusófonos: “Eu vim aqui para lhe dizer/ Eu vim aqui para lhe dizer/ Que eles agora estão /Numa relax/ Numa tranquila/ Numa boa (...) / Lendo os livros da Cultura Racional/Guiné Bissau/ Moçambique e Angola”. Interessante notar que após esta fase racional, Maia “desperta” para a situação dos países africanos e se “contradiz”: “Em Guiné Bissau/Não está legal”. 21


Retomando a análise do álbum África-Brasil, as referências ao “continente negro” aparecem também nas composições Cavaleiro do Cavalo Imaculado, onde São Jorge é alçado ao posto de “príncipe” de toda África; na canção que dá nome ao LP, onde se remete a ideia de realeza africana contando a história de uma princesa africana que foi vendida no Brasil como escrava e anunciando a chegada de Zumbi como um Deus redentor; e Ponta de lança africano (Umbabarauma). Sobre a última, Jorge declarou no documentário de 2010 de onde veio à inspiração para esta canção:

Morei na França. Ficava entre França e Inglaterra. Eu e meu primeiro grupo, o Admiral Jorge V, e foi a primeira vez que vi esse jogador, negro, Umbabarauma. (...) E o ponta de lança é porque ele jogava com a Camisa 10. 22


Poderia ser dito de maneira simplista que o fato de Jorge Ben ser descendente de Etíopes enseja nesta evocação de uma ancestralidade africana. Entretanto, o mais indicado seria dizer que este indivíduo escolhe reverenciar e valorizar suas heranças africanas. Mesmo dizendo que tem também ancestrais europeus, o artista pouco fala sobre isso. Escolhe, por exemplo, ao morar na Europa e assistir as disputas entre times europeus, homenagear o jogador africano em vez de quaisquer outros jogadores, que certamente em sua maioria eram europeus. Esta evocação é um ponto determinante na elaboração da sua identidade enquanto sujeito negro. E este processo não é isolado, pois diversos outros artistas no Brasil e no mundo, neste período fazem esta evocação. A África foi, é e continua sendo usada como um “banco de dados” (SANSONE: 2002) de forma criativa e é uma força central para a cultura produzida por sujeitos negros ao redor do mundo.

Cabem aqui algumas considerações sobre identidade. Para Ulpiano Menezes identidade deriva do radical grego idios que faz referência a “si próprio”, “privado” (MENEZES: 1993, 208). Assim, a identidade enseja “semelhanças consigo mesmo”, sendo mais um processo de reconhecimento que de conhecimento. Segundo Frederick Barth, para que exista a semelhança é necessário que exista a diferença e por isto a identidade é dada pelo contraste (BARTH apud MENEZES: 1993, 209). É importante também demarcar que a identidade não é algo estático, pelo contrário, é dinâmico. Está sempre em transformação, como nos lembra Stuart Hall: a identidade cultural deve ser pensada como uma “produção” que nunca se completa, que está sempre em construção(HALL: 1996, 68). E que se constrói a partir de referenciais coletivos, baseadas na história comum e nos padrões de cultura partilhados. Esta operação de busca do passado ou de o “redescobrir”, em geral tende a ter um quadro referencial pouco refratário a mudanças, desta forma sujeitos como Jorge Ben tendem a buscar o passado grandioso do Império Etíope. E também a louvar modelos idealizados do que seriam os africanos, como a construção que Jorge faz de Zumbi ou até mesmo do ligeiramente africanizado São Jorge, caracterizado como “Leão do Império/Príncipe de toda África”.


Ainda segundo Hall, as identidades não são uma simples operação de “recuperar o passado” a fim de garantir uma percepção do grupo acerca de si mesmo, mas, sobretudo, são os nomes que o indivíduo ou o grupo dão as posições que tomam frente às narrativas do passado (HALL: 1996, 68). Este passado vai sendo reconstruído atendendo as necessidades do presente, assim quando Jorge reverencia e valoriza a sua ascendência etíope, é uma posição política de afirmar a sua identidade com um sujeito negro orgulhoso de um passado nobre e valoroso.

Retomando a questão do quadro de referenciais fixos, proposto por Hall, grosso modo, se construiu uma visão de as culturas negras de origem africana, tem algumas características comuns. Por exemplo, o músico negro Paulinho da Viola em entrevista ao Pasquim em 1970, ressalta que a música negra teria como características o ritmo e o improviso. Por isso Jorge Ben aciona esta ideia quando tenta explicar o porquê foi convidado a se apresentar na Argélia. Porque seu violão é “rítmico”, “percussivo”, diz o artista. Sua caracterização de Zumbi é também informada pela visão idealizada do que seria o homem africano ou afrodescendente: guerreiro, bravo. A África cantada por este artista é também uma idealização. É a Etiópia de sua mãe e de Haile Selassie. Uma terra de nobreza. É importante notar que diferente de Tim Maia ou de Bob Marley, Ben não costumava articular imagens das guerras contra o colonialismo ou das guerras civis. Esta construção é eminentemente política como toda identidade o é. E seus objetivos são a valorização de uma estética e de uma autoestima negras.


Citações:

Alexandre Reis - Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Bolsista CAPES.
2 Até 1984, este músico usava o nome artístico Jorge Ben. E pretendo usar este nome por conta do recorte da dissertação. Eu quero ver quando Zumbi chegar: política, identidade e relações raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). O trabalho atual é uma versão adaptada do capítulo IV da referida dissertação.
3 África-Brasil. 1976. Philips.
4 Parte da letra da canção: Umbabarauma homem-gol (...) /Umbabarauma homem-gol/Joga bola, joga bola Corocondô/ (...) Essa é a história de Umbabarauma/ Um ponta de lance africano/ Um ponta de lance decidido/ Umbabarauma.
5 UMBABARAUMA: o documentário. Direção: Felipe Briso. NSW. 2010(15 min). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Ryz0FLoMXbo. Consulta em 02 de novembro de 2013.
6 “Tel us not just what people did, but what they wanted to do, what they believe they are doing, and they now they did”. Tradução livre minha. Preferi usar a expressão “deslocamento de memória” a “ucronia” que o autor usa especificamente para casos em que a memória muda o sentido original do fato ocorrido. No caso de Jorge só mudou a data e não o sentido. PORTELLI. 1991. Pg. 50.
7 O Globo. Segundo caderno. Pg. 06. 1985.
8 O Globo. 13/03/1974. Segundo Caderno. Pg.06.
9 Revista Veja nº 70. 07/01/1970. Pg. 65.
10 Revista do Rádio. Ed. 732. 1963.
11 Revista do Rádio. Ed. 732. 1963.
12 Revista Trip nº 183. 2009. Disponível em http://revistatrip.uol.com.br/revista/183/paginas-negras/o-homempatropi.
html. Consulta em 02 de maio de 2013.
13 Entrevista de Jorge Ben Jor no Programa Roda Viva (18/12/1995). TV Cultura.
14 Folha de S. Paulo. 24/05/1971. Pg. 02; O Globo. Caderno: “Em todo Globo”. Pg. 01.
15 Marcus Garvey pregava também o retorno da diáspora e, por conseguinte, voltar à África chegando a fundar uma companhia marítima para este fim. Até hoje alguns dos pilares do rastafarianismo são o culto a Selassie e volta à terra dos ancestrais. LOPES, Nei. 2006. Pg. 295.
16 Jornal do Brasil.30/081969. Primeiro caderno. Pg. 02.
17 Provavelmente este “mito“ se originou no fato de Jorge homenagear sua mãe dizendo que ela seria filha denobres africanos na canção Criola (1969). UMBABARAUMA – o documentário... Op. cit. 2010.
18 Não vou aprofundar essa análise porque esta canção é dos anos 1990.
19 “Até que a filosofia que sustenta uma raça/ Superior e outra inferior/ Seja finalmente e permanentemente desacreditada e abandonada /Haverá guerra, eu digo guerra/”. Tradução livre minha.
20 Rodésia do álbum Tim Maia. Polydor Records. 1976.
21 Do álbum Racional. Vol. 2. Seroma. 1976.
22 Umbabarauma: o documentário. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Ryz0FLoMXbo. Consulta em 24 de fevereiro de 2014.


Bibliografia:

BARTH, Frederick. Los grupos étnicos y sus fronteras México: Fondo de 1968. Cultura Econômica apud Ulpiano. A problemática da identidade cultural nos museus: de objetivo (de ação) a objeto (de conhecimento). Anais do Museu Paulista. SP, USP, n.1, 1993. p.p. 207-222

GILROY, Paul. O atlântico negro. Rio de Janeiro, Editora 34. 2001.

GUILLÉN, Izabel. Ancestralidade e oralidade nos movimentos negros de Pernambuco. Comunicação apresentada no XXVII Simpósio Nacional de História. Julho de 2013. Disponível em http://snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364666404_ARQUIVO_Ancestralidadeeoralidadeanpuh.pdf. Consulta em 06 de novembro de 2013.

HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.24, p.68-75, 1996.

LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo. Selo Negro. 2006.

MENESES, Ulpiano. A problemática da identidade cultural nos museus: de objetivo (de ação) a objeto (de conhecimento). Anais do Museu Paulista. SP, USP, n.1, 1993. p.p. 207-222

PORTELLI, Alessandro. “The best garbage man in town: life and times of Valtero Pepollono, worker” In: The death of Luigi Trastulli and others stories: form and meaning in oral history. 

Albany: State University of New York Press. 1991.

SANSONE, Lívio. Da África ao Afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX. Revista Afro-Ásia n°27(2002).
Leia também: “EU QUERO VER QUANDO ZUMBI CHEGAR” - Negritude, política e relações raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976).



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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

MUNDINHO EM CARTUM - RAS TAFARI E EDUCAÇÃO




'Mundinho Em Cartum' traz um pouco sobre vivência, história e cotidiano que trazemos em nossas raízes, plantadas por nossos ancestrais em uma eterna luta contra desigualdade, rascimo, preconceito e separatismo,para isso preparamos essa arte educacional a fim de propagar um pouco sobre cultura de matriz africana chamada Ras Tafari. 

 
Os desenhos desse álbum trazem desenhos e textos de Xandão Cruz com vivências e textos de Michel Iriê, Carol Jafet e orientados pelo aprendizado, audições, leitura, diálogo, "caminhada" e vivência.

Contos, "causos" e idéias passados por mestres e mestras ancestrais, griôts e anciões que por pura humildade repassam seus ensinamentos.

Respeito aos Elders, Griôts, Ancestrais, Estudiosos, Historiadores, Vivenciadores e simpatizantes que direta ou indiretamente formam mentes que absorvem ou conhecem a cultura Ras Tafari.






VAMOS INCLUIR O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NA REDE ESCOLAR, LEI 10639 JÁ!

CHEGA DE MENTIRA E INVERDADES SOBRE CULTURAS AFRO, QUEREMOS A VERDADE!



Turbante: usado pelos homens, principalmente na ordem “bobo shanti”, para cobrir os cabelos em público.
Representa também o vínculo oficial com o congresso E.A.B.I.C (Congresso Negro Internacional Etíope).
É usado "para cima" apontando para o universo, representando o ministério masculino (deus).
No Brasil é comum ver homens e mulheres usando turbante por vários motivos ancestrais, religiosos,
culturais e dezenas de outros motivos afro. Os anciãos rastafáris também chamam o turbante de “torço”.
Texto: MIchel Iriê e Xandão, desenho: Xandão.

Lição de casa: olhem aí na lousa, pessoal! Nas horas vagas pesquisem sobre a Imperatriz Taitu Bitul,
esposa de Sahle Maryam (Menelik II) e sobre o livro de Enoque.
Semana que vem continuaremos postando humildemente este projeto, agradecemos imensamente a manifestação
de todos direta e indiretamente.
Xandão Cruz.
 
Véu ou caída (bobo mary fall): usado pelas mulheres para cobrir os cabelos em público, é mais utilizado na
ordem Boboshanti ( idéia de organização chamada de E.A.B.I.C dentro da cultura a partir da visão de Prince
Emmanuel, que busca raízes na ordem de Melquisedeque). O véu também é chamado de "caída" por ser
um tecido que fica "para baixo" apontando diretamente para a terra, representação do ministério feminino (deusa).
Texto: Michel Iriê com desenho de Xandão Cruz.


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sexta-feira, 13 de maio de 2016

QUILOMBISMO - PARTE 1




QUILOMBISMO: Um conceito científico emergente do processo histórico-cultural da população afro-brasileira

Uma proposta do autor aos seus irmãos afrodescendentes no Brasil e nas Américas, apresentada em trabalho apresentado ao 2º Congresso de Cultura Negra das Américas, Panamá, 1980.

...uma verdadeira revolução racial democrática, em nossa era, só pode dar-se sob uma condição: o negro e o mulato precisam torna-se o antibranco, para encarnarem o mais puro radicalismo democrático e mostrar aos brancos o verdadeiro sentido da revolução democrática da personalidade, da sociedade e da cultura.

- Florestan Fernandes
O Negro no Mundo dos Brancos



Memória: a antigüidade do saber negro-africano

Numa passagem anterior do texto deste livro fizemos menção à urgente necessidade do negro brasileiro em recuperar a sua memória. Esta tem sido agredida sistematicamente pela estrutura de poder e dominação há quase 500 anos. Semelhante fato tem acontecido com a memória do negro-africano, vítima, quando não de graves distorções, da mais crassa negação do seu passado histórico.

A memória dos afro-brasileiros, muito ao contrário do que afirmam aqueles historiadores convencionais de visão curta e superficial entendimento, não se inicia com o tráfico escravo e nem nos primórdios da escravidão dos africanos, no século XV. Em nosso país, a elite dominante sempre desenvolveu esforços para evitar ou impedir que o negro brasileiro, após a chamada abolição, pudesse assumir suas raízes étnicas, históricas e culturais, desta forma seccionando-o do seu tronco familial africano. A não ser em função do recente interesse do expansionismo industrial, o Brasil como norma tradicional ignorou o continente africano. Voltou suas costas à África logo que não conseguiu mais burlar a proibição do comércio da carne africana imposta pela Inglaterra aí por volta de 1850. A imigração maciça de europeus ocorreu daí a mais alguns anos, e as classes dominantes enfatizam sua intenção e ação no sentido de arrancar da mente e do coração dos descendentes escravos a imagem da África como um a lembrança positiva de nação, de pátria, de terra nativa; nunca em nosso sistema educativo se ensinou qualquer disciplina que revelasse algum apreço ou respeito às culturas, artes, línguas e religiões de origem africana. E o contato físico do afro-brasileiro com os seus irmãos no continente e na diáspora sempre foi impedido ou dificultado, entre outros obstáculos, pela carência de meios econômicos que permitissem ao negro se locomover e viajar fora do país. Porém, nenhum desses empecilhos teve o poder de obliterar completamente do nosso espírito e da nossa lembrança a presença viva da Mãe África.


As diversas estratégias e os expedientes que se utilizam contra a memória do negro-africano têm sofrido, ultimamente, profunda erosão e irreparável descrédito. Este trabalho é fruto da dedicação e competência de alguns africanos, a um tempo estudiosos, pesquisadores, cientistas, filósofos, e criadores de literatura e arte, pessoas do continente africano e da diáspora africana. Cheikh Anta Diop, do Senegal; Chancellor Williams, dos Estados Unidos; Ivan Van Sertima e George M. James, da Guiana; Yosef Ben-Jochannam, da Etiópia; Theophile Obenga, do Congo-Brazzaville; Wole Soyinka e Wande Abimbola, da Nigéria, figuram entre os muitos que estão ativos, produzindo obras fundamentais para a África contemporânea e futura. Em campos diferentes, e sob perspectivas diversas, o esforço desses eminentes irmãos africanos se canaliza rumo a exorcizar as falsidades, distorções e negações que há tanto tempo se vêm tecendo com o intuito de velar ou apagar a memória do saber, do conhecimento científico e filosófico, e das realizações dos povos de origem negro-africana. A memória do negro brasileiro é parte e partícipe nesse esforço de reconstrução de um passado ao qual todos os afro-brasileiros estão ligados. Ter um passado é ter uma conseqüente responsabilidade nos destinos e no futuro da nação negro-africana, mesmo enquanto preservando a nossa condição de edificadores deste país e de cidadãos genuínos do Brasil.

A obra fundamental de Cheikh Anta Diop, principalmente seu livro The African Origin of Civilization (versão em inglês de seleções de Nations Nègres et Culture e Antériorité des Civilisations Nègres, originalmente publicados em francês), apresenta uma confrontação radical e um desafio irrespondível à arrogância intelectual, desonestidade científica e carência ética do mundo acadêmico ocidental ao tratar os povos, civilizações e culturas produzidas pela África. Utilizando-se dos recursos científicos euro-ocidentais - Diop é químico, diretor do laboratório de radiocarbono do IFAN, em Dacar, além de egiptólogo, historiador e lingüista - este sábio está reconstruindo a significação e os valores da antigas culturas e civilizações erigidas pelos negro-africanos, as quais por longo tempo têm permanecido obnubiladas pelas manipulações, mentiras, distorções e roubos. São os bens de cultura e civilização e de artes criados pelos nossos antepassados no Egito antigo, os quais eram negros e não um povo de origem branco (ou vermelho escuro) conforme os cientistas ocidentais do século XIX proclamavam com ênfase tão mentirosa quanto interessada. Vejamos como a esse respeito se manifesta Diop:

O fruto moral da sua civilização está para ser contado entre os bens do mundo negro. Ao invés de se apresentar à história como um devedor insolvente, este mundo negro é o próprio iniciador da civilização "ocidental" ostentada hoje diante dos nossos olhos. Matemática pitagórica, a teoria dos quatro elementos de Thales de Mileto, materialismo epicureano, idealismo platônico, judaísmo, islamismo, e a ciência moderna, estão enraizados na cosmogonia e na ciência egípcias. Só temos que meditar sobre Osíris, o deus-redentor, que se sacrifica, morre e é ressuscitado, uma figura essencialmente identificável a Cristo (1974: XIV).


As afirmações de Diop se baseiam em rigorosa pesquisa, em rigoroso exame e rigorosa conclusão, não deixando margem para dúvidas ou discussões. E isto longe de pretender aquele dogmatismo que sempre caracteriza as certezas "científicas" do mundo ocidental. O que Diop fez foi simplesmente derruir as estruturas supostamente definitivas do conhecimento "universal" no que respeita à antigüidade egípcia e grega. Gostem ou não, os ocidentais têm de tragar verdades como esta: "...quatro séculos antes da publicação de A mentalidade primitiva de Lévy-Bruhl, a África negra muçulmana comentava a lógica formal de Aristóteles (que ele plagiou do Egito negro) e demonstrava-se especialista em dialética" (Diop, 1963: 212).

E isto, não esqueçamos, acontecia quase 500 anos antes que ao menos tivessem nascido Hegel ou Karl Marx...

Diop revolve todo o processo da mistificação de um Egito negro que se tornou branco por artes da magia européia dos egiptólogos. Após a campanha militar de Bonaparte no Egito, em 1799, e depois que os hieróglifos da pedra Rosetta foram decifrados por Champollion, o jovem, em 1822, os egiptólogos se desarticularam atônitos diante da grandiosidade das descobertas reveladas.

Eles geralmente a reconheceram como a mais antiga civilização, a que tinha engendrado todas as outras. Mas com o imperialismo, sendo o que é, tornou-se crescentemente "inadmissível" continuar aceitando a teoria evidente até então - de um Egito negro. O nascimento da egiptologia foi assim marcado pela necessidade de destruir a memória de um Egito negro, a qualquer custo, em todas as mentes. Daí em diante, o denominador comum de todas as teses dos egiptólogos, sua relação íntima e profunda afinidade, pode ser caracterizado como uma tentativa desesperada de refutar essa opinião [do Egito ser negro]. Quase todos os egiptólogos enfatizaram sua falsidade como uma questão fechada (1974: 45).


Desta posição intelectual em diante, como procederam os egiptólogos? Como negar a realidade egípcia, essencialmente negra, a qual não apresentava contradições científicas realmente confiáveis ou válidas? Não possuindo argumentos ou razões para refutar a verdade, exposta pelos antigos que viram o Egito de perto, alguns egiptólogos preferiram guardar silêncio sobre a questão; outros, mais obsessivos em seu irracionalismo, optaram pelo caminho da rejeição dogmática, infundada e indignada. De um modo geral, todos "se lamentavam que um povo tão normal como os egípcios antigos pudessem ter feito tão grave erro e desta forma criar tantas dificuldades e delicados problemas para os especialistas modernos" (Diop, 1974: 45).

A pretensiosidade eurocentrista nesse episódio se expõe de corpo inteiro. Lembra o exemplo de um típico escritor do "progressismo" brasileiro, o racista Monteiro Lobato, quando acusa o negro-africano de haver provocado graves problemas para o Brasil com a miscigenação, a tão celebrada mistura de sangues negro e branco... Mas voltemos aos egiptologistas: eles prosseguiram obstinadamente o vão esforço de provar "cientificamente" uma origem branca para a antiga civilização do Egito negro.

Quanto a Diop, compassivo e humano diante do feroz dogmatismo dos egiptólogos brancos, revelou bastante paciência e gentileza explicando-lhes que não alegava superioridade racial ou qualquer gênio especificamente negro naquela constatação puramente científica de que a civilização do Egito antigo fora erigida por um povo negro. O sucesso, explicou-lhe Diop, resultou de fatores históricos, de condições mesológicas - clima, recursos naturais, e assim por diante - somados a outros elementos não-rácicos. Tanto assim foi que, mesmo tendo-se expandido por toda a África negra, do centro e do oeste do continente, a civilização egípcia, ao embate de outras influências e situação histórica diversa, entrou num processo de desintegração e franco retrocesso. O importante é sabermos alguns dos fatores que contribuíram para a edificação da civilização egípcia, entre os quais Diop enumera estes: resultado de acidente geográfico que condicionou o desenvolvimento político-social dos povos que viviam às margens do vale do Nilo; as inundações que forçavam providências coletivas de defesa e sobrevivência, situação que favorecia a unidade e excluía o egoísmo individual ou pessoal. Nesse contexto surgiu a necessidade de uma autoridade central coordenadora da vida e das atividades em comum. A invenção da geometria nasceu da necessidade da divisão geográfica, e todos os demais avanços foram obtidos no esforço de atender uma carência requerida pela sociedade.


Um pormenor interessa particularmente à memória do negro brasileiro: aquele onde Diop menciona as relações do antigo Egito com a África negra, de modo específico com os iorubás. Parece que tais relações foram tão íntimas a ponto de se poder "considerar como um fato histórico a possessão conjunta do mesmo habitat primitivo pelos iorubás e egípcios". Diop levanta a hipótese de que a latinização de Horus, filhos de Osíris e Ísis, resultou no apelativo Orixá. Seguindo essa pista de estudo comparativo, ao nível da lingüística e outras disciplinas, Diop cita J. Olumide Lucas em The religion of the Yorubas, o qual traça os laços egípcios do seu povo iorubá, concluindo que tudo leva à verificação do seguinte: a) uma similaridade ou identidade de linguagem; b) uma similaridade ou identidade de crenças religiosas; c) uma similaridade ou identidade de idéias e práticas religiosas; d) uma sobrevivência de costumes, lugares, nomes de pessoas, objetos, práticas, e assim por diante (Diop, 1974: 184; Lucas, 1978: 18).

Meu objetivo aqui é o de apenas chamar a atenção para esta significativa dimensão da antigüidade da memória afro-brasileira. Este é um assunto extenso e complexo, cuja seriedade requer e merece pesquisa e reflexão aprofundadas, no contexto de uma revisão crítica das definições e dos julgamentos pejorativos que há séculos pesam sobre os povos negro-africanos.


Consciência negra e sentimento quilombista

Numa perspectiva mais restrita, a memória do negro brasileiro atinge uma etapa histórica decisiva no período escravocrata que se inicia por volta de 1500, logo após a "descoberta" do território e os atos inaugurais dos portugueses tendo em vista a colonização do país. Excetuando os índios, o africano escravizado foi o primeiro e único trabalhador, durante três séculos e meio, a erguer as estruturas deste país chamado Brasil. Creio ser dispensável evocar neste instante o chão que o africano regou com seu suor, lembrar ainda uma vez mais os canaviais, os algodoais, o ouro, o diamante e a prata, os cafezais, e todos os demais elementos da formação brasileira que se nutriram no sangue martirizado do escravo. O negro está longe de ser um arrivista ou um corpo estranho: ele é o próprio corpo e alma deste país. Mas a despeito dessa realidade histórica inegável e incontraditável, os africanos e seus descendentes nunca foram e não são tratados como iguais pelos segmentos minoritários brancos que complementam o quadro democrático nacional. Estes têm mantido a exclusividade do poder, do bem-estar e da renda nacional.


É escandaloso notar que porções significativas da população brasileira de origem européia começaram a chegar ao Brasil nos fins do século passado como imigrantes pobres e necessitados. Imediatamente passaram a desfrutar de privilégios que a sociedade convencional do país lhes concedeu como parceiros de raça e de supremacismo eurocentrista. Tais imigrantes não demonstraram nem escrúpulo e nem dificuldades em assumir os preconceitos raciais contra o negro-africano, vigentes aqui e na Europa, se beneficiando deles e preenchendo as vagas no mercado de trabalho que se negava aos ex-escravos e seus descendentes. Estes foram literalmente expulsos do sistema de trabalho e produção à medida que se aproximava a data "abolicionista" de 13 de maio de 1888.

Tendo-se em vista a condição atual do negro à margem do emprego ou degradado no semi-emprego e subemprego; levando-se em conta a segregação residencial que lhe é imposta pelo duplo motivo de condição racial e pobreza, destinando-lhe como áreas de moradias ghettos de várias denominações: favelas, alagados, porões, mocambos, invasões, conjuntos populares ou "residenciais"; considerando-se a permanente brutalidade policial e as prisões arbitrárias motivadas pela cor de sua pele, compreende-se por que todo negro consciente não tem a menor esperança de que uma mudança progressista possa ocorrer espontaneamente em benefício da comunidade afro-brasileira. As favelas pululam em todas as grandes cidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife, Brasília, podem se apontadas como exemplos. A cifra dos favelados exprime em si mesma a desgraça crescente no quociente alto que apresenta. Para ilustrar lembro os dados do Departamento de Serviço Social de São Paulo, publicados pelo O Estado de São Paulo de 16 de agosto de 1970, os quais denunciavam que mais de 60% da população paulistana vive em condições precaríssimas; se não esquecermos de que São Paulo é a cidade brasileira melhor servida de instalações de água e esgoto, poderemos fazer uma idéia mais aproximada das impossíveis condições higiênicas em que vegetam os afro-brasileiros por esse país afora. Em Brasília, segundo a revista Veja de 8 de outubro de 1969, entre os 510.000 habitantes da capital federal, 80.000 eram favelados. Enquanto no Rio de Janeiro a porcentagem de favelados oscila entre 40 a 50 por cento da população. Os racistas de qualquer cor, sob a máscara de "apenas reacionários, dirão que os ghettos existem disfarçados em favelas em várias cidades européias, não sendo um fenômeno tipicamente brasileiro. Certo. A tipicidade está em que a maioria absoluta dos favelados brasileiros, cerca de 95%, são de origem africana. Este detalhe caracteriza uma irrefutável segregação racial de fato. Isto no que concerne à população negra urbana. Entretanto, cumpre ressaltar que a maioria dos descendentes de escravos ainda vegeta nas zonas rurais, escrava de uma existência parasitária, numa situação de desamparo total. Pode-se dizer que não vivem uma vida de seres humanos.


E como sobrevive o segmento citadino da população afro-brasileira? Constitui uma categoria denominada pelo Anuário Estatístico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de "empregados em serviços". Uma estranha qualificação ou eufemismo para o subemprego e o semi-emprego, que rotula quase quatro milhões e meio de brasileiros. (Quartim, 1971: 152). Tal eufemismo surpreende porque nessa classificação se incluem os empregados sem ordenado fixo, isto é, biscateiros vivendo a pequena aventura diária de engraxar sapatos, lavar carros, entregar encomendas, transmitir recado, a venda ambulante de doces, frutas ou objetos, tudo à base da remuneração miserável do centavo.

Este é um retrato imperfeito de uma situação mais grave, a qual tem sido realidade em todo o decorrer de nossa história. Desta realidade é que nasce a necessidade urgente ao negro de defender sua sobrevivência e de assegurar a sua existência de ser. Os quilombos resultaram dessa exigência vital dos africanos escravizados, no esforço de resgatar sua liberdade e dignidade através da fuga ao cativeiro e da organização de uma sociedade livre. A multiplicação dos quilombos fez deles um autêntico movimento amplo e permanente. Aparentemente um acidente esporádico no começo, rapidamente se transformou de uma improvisação de emergência em metódica e constante vivência dos descendentes de africanos que se recusavam à submissão, à exploração e à violência do sistema escravista. O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso que facilitava sua defesa e sua organização econômico-social própria, como também assumiram modelos de organizações permitidas ou toleradas, freqüentemente com ostensivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. Não importam as aparências e os objetivos declarados: fundamentalmente, todas elas preencheram uma importante função social para a comunidade negra, desempenhando um papel relevante na sustentação da comunidade africana. Genuínos focos de resistência física e cultural. Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos revelados que conhecemos. Porém tanto os permitidos quanto os "ilegais" foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história. A este complexo de significações, a esta praxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo.


A constatação fácil do enorme número de organizações que se intitularam no passado e se intitulam no presente de Quilombo e/ou Palmares testemunha o quanto o exemplo quilombista significa como valor dinâmico na estratégia e na tática de sobrevivência e progresso das comunidades de origem africana. Com efeito, o quilombismo tem se revelado fator capaz de mobilizar disciplinadamente o povo afro-brasileiro por causa do profundo apelo psicossocial cujas raízes estão entranhadas na história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros. O Movimento Negro Unificado Contra o Racismo e a Discriminação Racial assim registra seu conceito quilombola ao definir o "Dia da Consciência Negra":

Nós, negros brasileiros, orgulhosos por descendermos de Zumbi, líder da República Negra dos Palmares, que existiu no Estado de Alagoas, de 1595 a 1695, desafiando o domínio português e até holandês, nos reunimos hoje, após 283 anos, para declarar a todo o povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data: 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra! Dia da morte do grande líder negro nacional, Zumbi, responsável pela primeira e única tentativa brasileira de estabelecer uma sociedade democrática, ou seja, livre, e em que todos - negros, índios e brancos - realizaram um grande avanço político, econômico e social. Tentativa esta que sempre esteve presente em todos os quilombos (1978).

A continuidade dessa consciência de luta político-social se estende por todos os Estados onde existe significativa população de origem africana. O modelo quilombista vem atuando como idéia-força, energia que inspira modelos de organização dinâmica desde o século XV. Nessa dinâmica quase sempre heróica, o quilombismo está em constante reatualização, atendendo exigências do tempo histórico e situações do meio geográfico. Circunstância que impôs aos quilombos diferenças em suas formas organizativas. Porém no essencial se igualavam. Foram (e são), nas palavras da historiadora Beatriz Nascimento, "um local onde a liberdade era praticada, onde os laços étnicos e ancestrais eram revigorados" (1979: 17). Esta estudiosa mulher negra afirma ter o quilombo exercido "um papel fundamental na consciência histórica dos negros" (1979: 18).


Percebe-se o ideal quilombista difuso, porém consistente, permeando todos os níveis da vida negra e os mais recônditos meandros e/ou refolhos da personalidade afro-brasileira. Um ideal forte e denso que via de regra permanece reprimido pelas estruturas dominantes, outras vezes é sublimado através dos vários mecanismos de defesa fornecidos pelo inconsciente individual ou coletivo. Mas também acontece às vezes o negro se apropriar dos mecanismos que a sociedade dominante concedeu ao seu protagonismo com a maliciosa intenção de controlá-lo. Nessa reversão do alvo, o negro se utiliza dos propósitos não-confessados de domesticação qual boomerang ofensivo. É o exemplo que nos deixou Candeia, compositor de sambas e negro inteligentemente dedicado à redenção do seu povo. Organizou a Escola de Samba Quilombo, nos subúrbios do Rio de Janeiro, com um profundo senso do valor político-social do samba em função do progresso da coletividade negra. Este importante membro da família quilombista faleceu recentemente, mas até o instante derradeiro ele manteve uma lúcida visão dos objetivos da entidade que fundou e presidiu no rumo dos interesses mais legítimos do povo afro-brasileiro. Basta folhear o livro de sua autoria e de Isnard, e ler trechos como este:

Quilombo - Grêmio Recreativo Arte Negra (...) nasceu da necessidade de se preservar toda a influência do afro na cultura brasileira. Pretendemos chamar a atenção do povo brasileiro para as raízes da arte negra brasileira. A posição do "Quilombo" é principalmente contrária à importação de produtos culturais prontos e acabados produzidos no exterior (1978: 87-88).

Neste último trecho, os autores tocam num ponto importante do quilombismo: o caráter nacionalista do movimento. Nacionalismo aqui não deve ser traduzido como xenofobismo. Sendo o quilombismo uma luta antiimperialista, se articula ao pan-africanismo e sustenta radical solidariedade com todos os povos em luta contra a exploração, a opressão, o racismo e as desigualdades motivadas por raça, cor, religião ou ideologia.


Num folheto intitulado 90 anos de abolição, publicado pela Escola de Samba Quilombo, Candeia registra que "foi através do Quilombo, e não do movimento abolicionista, que se desenvolveu a luta dos negros contra a escravatura" (1978: 7).

E o movimento quilombista está longe de haver esgotado seu papel histórico. Está tão vivo hoje quanto no passado, pois a situação das camadas negras continua a mesma, com pequenas alterações de superfície. Candeia prossegue:

Os quilombos eram violentamente reprimidos, não só pela força do governo, mas também por indivíduos interessados no lucro que teriam devolvendo os fugitivos a seus donos. Esses especialistas em caçar escravos fugidos ganharam o nome de triste memória: capitães-do-mato (1978: 5).

A citação dos capitães-do-mato é importante: via de regra eram eles mulatos, isto é, negros de pele clara assimilados pela classe dominante. Em nossos dias ainda podemos encontrar centenas, milhares, desses negros que vivem uma existência ambígua. Não pelo fato de possuírem o sangue do branco opressor, mas porque internalizando como positiva a ideologia do embranquecimento (o branco é o superior e o negro o inferior) se distanciam das realidades do seu povo e se prestam ao papel de auxiliares das forças repressivas do supremacismo branco. E tanto ontem quanto hoje, os serviços que se prestam à repressão se traduzem em lucro social e lucro pecuniário.


Nosso Brasil é tão vasto, ainda tão desconhecido e despovoado que podemos supor, sem grande margem de erro, que existem muitas comunidades negras vivendo isoladas, sem ligação ostensiva com as pequenas cidades e vilas do interior do país. Serão diminutas localidades rurais, desligadas do fluxo principal da vida do país, e mantendo estilos e hábitos de vida africana, ou quase, sob um regime de agricultura coletiva de subsistência ou sobrevivência. Podem até mesmo usar o idioma original trazido da África, estropiado, é bem verdade, porém mesmo assim linguagem africana conservada na espécie de quilombismo em que vivem. Às vezes podem até ganhar notícias extensas nas páginas da imprensa, conforme ocorreu à comunidade do Cafundó, situada nas imediações de Salto de Pirapora, no Estado de São Paulo. Os membros da comunidade herdaram uma fazenda deixada pelo antigo senhor, e não faz muito tempo as terras estavam sendo invadidas por latifúndiários das vizinhanças. Obviamente brancos, esse latifundários, com mentalidade escravocrata, não podem aceitar que um grupo de descendentes africanos possua uma propriedade imobiliária. Este não é um fato único, mas foi aquele que ganhou maior publicidade, mobilizando os negros paulistas em sua defesa. Ao visitar pela primeira vez a cidade de Conceição de Mato Dentro, em Minas Gerais, em 1975, tive oportunidade de me encontrar com um dos moradores de uma comunidade negra daquelas redondezas semelhante a Cafundó. Também herdaram a propriedade, segundo me relatou o dito morador, negro de 104 anos, ágil de inteligência e de pernas. Caminhava quase todos os dias cerca de 10 quilômetros a pé, e assim mantinha o contato do seu povo com a cidadezinha de Mato Dentro.

O avanço de latifundiários e de especuladores de imóveis nas terras da gente negra está pedindo uma investigação ampla e funda. Este é um fenômeno que ocorre tanto nas zonas rurais como nas cidades. Vale a pena transcrever, a respeito, trechos de uma nota estampada em Veja, seção "Cidades", a 10 de dezembro de 1975, página 52:


Desde sua remota aparição em Salvador, há quase dois séculos, os terreiros de candomblé foram sempre fustigados por severas restrições policiais. E, pelo menos nos últimos vinte anos, o cerco movido pela polícia foi sensivelmente fortalecido por um poderoso aliado - a expansão imobiliária, que se estendeu às áreas distantes do centro da cidade onde ressoavam os atabaques. Mais ainda, em nenhum momento a Prefeitura esboçou barricadas legais para proteger esses redutos da cultura afro-brasileira - embora a capital baiana arrecadasse gordas divisas com a exploração do turismo fomentado pela magia dos orixás (...) E nunca se soube da aplicação de sanções para os inescrupulosos proprietários de terrenos vizinhos às casas de culto, que se apossam impunemente de áreas dos terreiros. Foi assim que, em poucos anos, a Sociedade Beneficente São Jorge do Engenho Velho, ou terreiro da Casa Branca, acabou perdendo metade de sua antiga área de 7.500 metros quadrados. Mas infeliz ainda, a Sociedade São Bartolomeu do Engenho Velho da Federação, ou candomblé de Bogum, assiste impotente à veloz redução do terreno sagrado onde se ergue a mítica "árvore de Azaudonor" trazida da África há 150 anos e periodicamente agredida por um vizinho que insiste em podar seus galhos mais frondosos.

Eis como a sociedade dominante apertou o cerco da destituição, da fome e do genocídio dos descendentes africanos. Até os poucos, as raras exceções que por um milagre conseguiram ultrapassar a fronteira implacável da miséria, ou as instituições religiosas que ocupavam há séculos determinado espaço, se vêem de uma hora para outra invadidos em suas propriedades e usurpados em suas terras!



Quilombismo: um conceito científico histórico-social

Para os africanos escravizados assim como para os seus descendentes "libertos", tanto o Estado colonial português quanto o Brasil - colônia, império e república - têm uma única e idêntica significação: um estado de terror organizado contra eles. Um Estado por assim dizer natural em sua iniqüidade fundamental, um Estado naturalmente ilegítimo. Porque tem sido a cristalização político-social dos interesses exclusivos de um segmento elitista, cuja aspiração é atingir o status ário-européia em estética racial, em padrão de cultura e civilização. Este segmento tem sido o maior beneficiário da espoliação que em todos os sentidos tem vitimado o povo afro-brasileiro ao longo da nossa história. Conscientes da extensão e profundidade dos problemas que enfrenta, o negro sabe que sua oposição ao que aí está não se esgota na obtenção de pequenas reivindicações de caráter empregatício ou de direitos civis, no âmbito da dominante sociedade capitalista-burguesa e sua decorrente classe média organizada. O negro já compreendeu que terá de derrotar todas as componentes do sistema ou estrutura vigente, inclusive a sua intelligentsia responsável pela cobertura ideológica da opressão através da teorização "científica" seja de sua inferioridade biossocial, da miscigenação sutilmente compulsória ou do mito "democracia racial". Essa intelligentsia, aliada a mentores europeus e norte-americanos, fabricou uma "ciência" histórica ou humana que ajudou a desumanização dos africanos e seus descendentes para servir os interesses dos opressores eurocentristas. Uma ciência histórica que não serve à história do povo de que trata está negando-se a si mesma. Trata-se de uma presunção cientificista e não de uma ciência histórica verdadeira.


Como poderiam as ciências humanas, históricas - etnologia, economia, história, antropologia, sociologia, psicologia, e outras - nascidas, cultivadas e definidas para povos e contextos sócio-econômicos diferentes, prestar útil e eficaz colaboração ao conhecimento do negro, sua realidade existencial, seus problemas e aspirações e projetos? Seria a ciência social elaborada na Europa ou nos Estados Unidos tão universal em sua aplicação? Os povos negros conhecem na própria carne a falaciosidade do universalismo e da isenção dessa "ciência". Aliás, a idéia de uma ciência histórica pura e universal está ultrapassada. O conhecimento científico que os negros necessitam é aquele que os ajude a formular teoricamente - de forma sistemática e consistente - sua experiência de quase 500 anos de opressão. Haverá erros ou equívocos inevitáveis em nossa busca de racionalidade do nosso sistema de valores, em nosso esforço de autodefinição de nós mesmos e de nosso caminho futuro. Não importa. Durante séculos temos carregado o peso dos crimes e dos erros do eurocentrismo "científico", os seus dogmas impostos em nossa carne como marcas ígneas da verdade definitiva. Agora devolvemos ao obstinado segmento "branco" da sociedade brasileira as suas mentiras, a sua ideologia de supremacismo europeu, a lavagem cerebral que pretendia tirar a nossa humanidade, a nossa identidade, a nossa dignidade, a nossa liberdade. Proclamando a falência da colonização mental eurocentrista, celebramos o advento da libertação quilombista.

O negro tragou até à última gota os venenos da submissão imposta pelo escravismo, perpetuada pela estrutura do racismo psicossócio-cultural que mantém atuando até os dias de hoje. Os negros têm como projeto coletivo a ereção de uma sociedade fundada na justiça, na igualdade e no respeito a todos os seres humanos, na liberdade; uma sociedade cuja natureza intrínseca torne impossível a exploração econômica e o racismo. Uma democracia autêntica, fundada pelos destituídos e os deserdados deste país, aos quais não interessa a simples restauração de tipos e formas caducas de instituições políticas, sociais e econômicas as quais serviriam unicamente para procrastinar o advento de nossa emancipação total e definitiva, que somente pode vir com a transformação radical das estruturas vigentes. Cabe mais uma vez insistir: não nos interessa a proposta de uma adaptação aos moldes da sociedade capitalista e de classes. Esta não é a solução que devemos aceitar como se fora mandamento inelutável. Confiamos na idoneidade mental do negro, e acreditamos na reinvenção de nós mesmos e de nossa história. Reinvenção de um caminho afro-brasileiro de vida fundado em sua experiência histórica, na utilização do conhecimento crítico e inventivo de suas instituições golpeadas pelo colonialismo e o racismo. Enfim, reconstruir no presente uma sociedade dirigida ao futuro, mas levando em conta o que ainda for útil e positivo no acervo do passado. Um futuro melhor para o negro tanto exige uma nova realidade em termos de pão, moradia, saúde, trabalho, como requer um outro clima moral e espiritual de respeito às componentes mais sensíveis da personalidade negra expressas em sua religião, cultura, história, costumes e outras formas.


A segurança de um futuro melhor para a população negra não se inclui nos dispositivos da chamada "lei de segurança nacional". Esta é a segurança das elites dominantes, dos seus lucros e compromissos com o capital interno ou estrangeiro, privado ou estatal. A segurança da "ordem" econômica, social e política em vigor é aquela associada e inseparável das teorias "científicas" e dos parâmetros culturais e ideológicos engendrados pelos opressores e exploradores tradicionais da população afro-brasileira.

Tampouco nos interessa o uso ou a adoção de slogans ou palavras de ordem de um esquerdismo ou democratismo vindos de fora. A revolução negra produz seus historiadores, sociólogos, antropólogos, pensadores, filósofos e cientistas políticos. Tal imperativo se aplica também ao movimento afro-brasileiro.

Um instrumento conceitual operativo se coloca, pois, na pauta das necessidades imediatas da gente negra brasileira. O qual não deve e não pode ser fruto de uma maquinação cerebral arbitrária, falsa e abstrata. Nem tampouco um elenco de princípios importados, elaborados a partir de contextos e de realidades diferentes. A cristalização dos nossos conceitos, definições ou princípios deve exprimir a vivência de cultura e de praxis da coletividade negra. Incorporar nossa integridade de ser total, em nosso tempo histórico, enriquecendo e aumentando nossa capacidade de luta.

Precisamos e devemos codificar nossa experiência por nós mesmos, sistematizá-la, interpretá-la e tirar desse ato todas as lições teóricas e práticas conforme a perspectiva exclusiva dos interesses da população negra e de sua respectiva visão de futuro. Esta se apresenta como a tarefa da atual geração afro-brasileira: edificar a ciência histórico-humanista do quilombismo.


Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sócio-político em termos de igualitarismo econômico. Os precedentes históricos conhecidos confirmam esta colocação. Como sistema econômico o quilombismo tem sido a adequação ao meio brasileiro do comunitarismo ou ujamaaísmo da tradição africana. Em tal sistema as relações de produção diferem basicamente daquelas prevalecentes na economia espoliativa do trabalho, chamada capitalismo, fundada na razão do lucro a qualquer custo. Compasso e ritmo do quilombismo se conjugam aos mecanismos operativos, articulando os diversos níveis de uma vida coletiva cuja dialética interação propõe e assegura a realização completa do ser humano. Nem propriedade privada da terra, dos meios de produção e de outros elementos da natureza. Todos os fatores e elementos básicos são de propriedade e uso coletivo. Uma sociedade criativa, no seio da qual o trabalho não se define como uma forma de castigo, opressão ou exploração; o trabalho é antes uma forma de libertação humana que o cidadão desfruta como um direito e uma obrigação social. Liberto da exploração e do jugo embrutecedor da produção tecno-capitalista, a desgraça do trabalhador deixará de ser o sustentáculo de uma sociedade burguesa parasitária que se regozija no ócio de seus jogos e futilidades.

Os quilombolas dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX nos legaram um patrimônio de prática quilombista. Cumpre aos negros atuais manter e ampliar a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e de afirmação da sua verdade. Um método de análise, compreensão e definição de uma experiência concreta, o quilombismo expressa a ciência do sangue escravo, do suor que este derramou enquanto pés e mãos edificadores da economia deste país. Um futuro de melhor qualidade para a população afro-brasileira só poderá ocorrer pelo esforço enérgico de organização e mobilização coletiva, tanto da população negra como das suas inteligências e capacidades escolarizadas, para a enorme batalha no fronte da criação teórico-científica. Uma teoria científica inextricavelmente fundida à nossa prática histórica que efetivamente contribua à salvação da comunidade negra, a qual vem sendo inexoravelmente exterminado. Seja pela matança direta da fome, seja pela miscigenação compulsória, pela assimilação do negro aos padrões e ideais ilusórios do lucro ocidental. Não permitamos que a derrocada desse mundo racista, individualista e inimigo da felicidade humana afete a existência futura daqueles que efetiva e plenamente nunca a ele pertenceram: nós, negro-africanos e afro-brasileiros.


Condenada a sobreviver rodeada ou permeada de hostilidade, a sociedade afro-brasileira tem persistido nesses quase 500 anos sob o signo de permanente tensão. Tensão esta que consubstancia a essência e o processo do quilombismo.
Assegurar a condição humana do povo afro-brasileiro, há tantos séculos tratado e definido de forma humilhante e opressiva, é o fundamento ético do quilombismo. Deve-se assim compreender a subordinação do quilombismo ao conceito que define o ser humano como o seu objeto e sujeito científico, dentro de uma concepção de mundo e de existência na qual a ciência constitui uma entre outras vias do conhecimento.





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QUARTIM, João (1971). Dictatorship and armed struggle in Brazil, trad. David Fernbach. Nova Iorque: Monthly Review Press.

Trecho do livro O Quilombismo, 2ª ed. (Brasília/ Rio: Fundação Cultural Palmares/ OR Editora, 2002).






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