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terça-feira, 13 de abril de 2021

BAILES BLACK


Os quatro jovens que chegam ao pequeno salão localizado na pacata rua da Barra Funda estão entusiasmados. Um dos rapazes particularmente é dono de uma íntima e contida alegria, já que é a primeira vez que vai ao salão de baile. Ele chega à bilheteria, compra o ingresso e, quando os quatro entram, descortina-se para ele uma realidade diferente. A primeira sensação é a de ter entrado em um mundo paralelo. Luzes escuras, giratórias, música em alto volume, e jovens como ele dançam animadamente, causando-lhe certa comoção por causa da alegria espontânea que acompanha os gestos de braços, pernas, quadris…

O salão está repleto, as roupas são bem cuidadas, alguns suam, outros circulam de um lado a outro. Meninas e rapazes se olham com interesse. Nas caixas, o som que começa a tocar é o de Natalie Cole cantando This Will Be, e gritos de aprovação se fazem ouvir. Depois uma sequência de músicas traz aos ouvidos Tim Maia, Jorge Ben, Bebeto, e então braços se trançam nos volteios ritmados do samba-rock. De repente as cores se tornam mais suaves, o ritmo do som diminui, uma luz negra se acende. Marvin Gaye começa a cantar Let’s Get it On e mais gritinhos são ouvidos. Casais se formam para dançar juntos, colados. Os rapazes circulam, chamam as meninas para dançar, são rejeitados, insistem com outras e logo muitos estão dançando. É a sessão de lentas.

O jovem que entrou pela primeira vez no salão aos poucos vai se acostumando com aquele burburinho de sons e vozes, aquela riqueza de luzes e cores. Mas o que o choca mais é que, diferentemente do que vive no seu dia-a-dia, ali a maioria das pessoas é negra, e ele se sente bem. De algum modo, assim que colocou os pés no salão São Paulo Chic, teve certeza de que estava num lugar ao qual pertencia.

Dos meados da década de 70, época em que os bailes no São Paulo Chic lotavam, para cá, houve pouca mudança em termos desse sentimento de identidade que os bailes da população negra provocam.

As equipes de som se profissionalizaram. As modestas caixas acústicas que faziam a alegria dos dançarinos nos pequenos salões foram substituídas por grandes equipamentos de som durante o movimento Black São Paulo, uma extensão do movimento Black Rio que, ainda no final dos anos 70, trocou o ritmo do samba-rock pelo soul e funk de James Brown, Sly and Family Stone, Bar Kays… E isso não ocorreu sem conflitos. Os jovens que aderiam a essa nova onda do soul eram chamados de “neguinhos pop” por aqueles adeptos do som mais antigo. O termo “pop” na verdade se referia mais às músicas de apelo comercial que tocavam nas rádios, mas passou a denominar o soul.


Porém, a nova onda se espalhava rapidamente. Na época em que não havia internet, centenas de negros se reuniam no viaduto do Chá ao cair da tarde das sextas-feiras e as felipetas circulavam por ali anunciando os próximos bailes, sob os olhares e eventuais revistas de muitos policiais militares e sob a atenção de alguns policiais federais, já que aquela reunião podia ser subversiva.

Enquanto em salões como São Paulo Chic o baile comportava um número menor de pessoas, o movimento soul procurava amplos espaços e começava a trazer milhares de pessoas para seus bailes. O aspecto da identidade começou a se acentuar. Nas paredes dos salões, como a Associação Atlética São Paulo, eram exibidos filmes e documentários, a exemplo de Wattstax, que versavam sobre a luta dos afro-americanos em busca de cidadania.

O fato é que os bailes sempre fizeram parte da vida da população negra. A musicalidade e o ritmo são intrínsecos à maioria das culturas tradicionais africanas e essa herança é expressa, de diversas formas, pelos afro-brasileiros. Desde o pós-abolição, as diversas entidades que se formaram tiveram nos bailes uma expressão importante como atividade de lazer. Impedidos de entrar em festas de brancos, os afrodescendentes construíram seu próprio campo de entretenimento. A Frente Negra, por exemplo, tinha o grupo das Rosas Negras, que organizava as grandes festas na década de 30. Mas essas festas tinham não só um caráter recreativo, como também cultural e pedagógico, pois havia palestras, apresentação de grupos de teatro e outras atividades culturais.

Nas décadas de 70 e 80 o movimento soul retomou esse caráter mais educativo das festas. Algumas lideranças do movimento negro iam lá fazer discursos, panfletar, chamar aquele contingente de jovens em sua maioria negros para uma ação política.


“Os Carlos, Tranza Negra, Eduardo, Amaury são nomes que evocam nostalgias, e nostalgia é uma palavra que ainda denomina alguns tipos de bailes frequentados por uma população mais adulta, como os do Musicália e Musicaliando, nomes parecidos que encobrem alguns conflitos que esse campo abarca”.

Isso trouxe resultados nos anos seguintes, especialmente para o movimento hip hop, que nasceu nesse ambiente em que as equipes de som estão mais organizadas e os discursos mais afinados com a busca de uma identidade étnica. As equipes proporcionaram espaço para que grupos de rap viessem mostrar seus trabalhos. Os Racionais MCs, por exemplo, começaram a se apresentar nos bailes da equipe Zimbabwe, uma das pioneiras do movimento soul, que, transformada em selo musical, lançou o grupo. Outras equipes, como Chic Show e Black Mad, também gravavam artistas não só de rap como de outros gêneros, a exemplo do pagode, que divulgavam em seus programas nas rádios, como Bandeirantes e 105 FM. Além disso, algumas equipes adquiriram seus próprios salões, como o Clube da Cidade, na Barra Funda.

Clubes como Alepo, Casa de Portugal, Homs fazem parte da história de vida de pessoas que foram e vão a esses locais para dançar, se divertir, estar em um lugar com seus iguais. DJs (herdeiros do pioneiro Sr. Osvaldo e sua “orquestra invisível”), dançarinos, empresários, cantores, donos de equipe, seguranças compõem um contingente que vibra nos subterrâneos da cidade.

Alguns lugares marcaram gerações, como o Sambary Love, no bairro da Bela Vista, com seus dois ambientes sempre cheios: um em que tocava o gênero “black” (as muitas variações do R&B) e outro dedicado ao samba-rock e pagode ao vivo. Como outros bailes, ali também era frequentado por pesquisadores, militantes, ativistas.


O baile “de preto”, baile “black”, baile nostalgia, baile soul, o baile, enfim, é esse local para o qual convergem expectativas, alegrias, emoções. Não é só a música e dança que o caracterizam, embora sejam o apelo mais forte; não é frequentado só por negros, mas é um campo em que se constroem identidades, expressas nos gestos, nas roupas, na estética, no comportamento.

Aqueles quatro jovens que chegaram ao salão São Paulo Chic na década de 70 talvez hoje não fossem ao baile, talvez fossem para a “balada”. Às vezes a impressão é de que a época gloriosa dos bailes já passou. Mas certas paixões voltam, como o samba-rock. As gerações vão se reinventando e recriando os bailes, que continuam aproximando as pessoas nas periferias, no centro, ou mesmo nas casas noturnas da Vila Madalena. Nos bailes, a vida ainda pulsa numa dança que se perpetua.



sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

O ORGULHO BROTOU – UMA TARDE DE BREAK EM 1984


(…) Há seis mil anos até pra plantar
Os pretos dança todo mundo igual sem errar
Agradecendo aos céus pelas chuvas que cai (…)
Mano Brown, na música Eu Sô Função, do álbum Exilado Sim, Preso Não (2006), de Dexter.


As manifestações negras performadas por meio da dança surgiram em contextos históricos complexos no Brasil. O traumático processo que separou mulheres e homens africanos escravizados de seus grupos linguísticos e cultural – logo que aqui chegavam – misturando-os com outros, de povos diversos, certamente inscreve-se com destaque na subjetividade presente no gene destes contextos. As muitas vertentes das nossas danças negras expandem o sentido plástico convencional ao movimento e ao ritmo, empregando função ao gesto. É arrebatador.


Nos primeiros anos de 1980, quando o break aterrissou no Brasil e manifestou-se com pujança em São Paulo, a expansão simbólica intrínseca as manifestações performáticas negras estava lá. O protagonismo do corpo jovem, periférico e negro dos seus atores era ballet, mas também reivindicava uma estética própria, e trazia demandas que nos são caras ainda hoje. Impor uma nova agenda a cidade e exercer o legítimo direito de se sentirem pertencentes ao espaço público, e assim alterar a rotina da região central de São Paulo, era uma delas. A criatividade emancipatória do Hip Hop aflorava-se naquele momento, e a dança, primeiro dos seus elementos a se estabelecer no país, cumprindo sua generosa função expandida.


Por isso, não foi por acaso que o jovem fotógrafo Wagner Celestino dirigiu-se justamente à Praça da Sé no fim daquela ensolarada manhã de 1984 para ver o 1° Encontro de Break de São Paulo. Já que no início dos anos 1980, o centro de São Paulo – acompanhando os impactos da reabertura do país, começava a ser tomado por uma grande diversidade de tribos, entre elas uma formada em sua maioria por jovens negros das periferias (muitos deles office boys que já trabalhavam na região). Foram eles que deram os primeiros passos do que à época chamavam de Break Dance, ocupando as imediações da Estação São Bento do Metrô e as escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Este último, palco histórico da manifestação antirracista ocorrida em 7 de julho de 1978 e que culminou na fundação do Movimento Negro Unificado (MNU).


A verdade é que a imposição de uma paisagem predominantemente preta, pobre, criativa e espontânea, que se formava no centro conduzida pelo movimento hip hop incomodou. Dizem, inclusive, que foi por implicações de lojistas da Rua 24 de maio que os encontros de break foram transferidos para a Estação São Bento do Metrô.


Originalmente surgido nos Estados Unidos na virada dos anos 60 para os anos 70, o break foi um meteórico fenômeno que teve o seu auge no Brasil entre 1983 e 1984. Neste período, a TV brasileira – atenta as movimentações populares que pudessem lhe gerar audiência e lucro – surfou na febre do break.




O break segue como um elemento importante, mas com o tempo foi superado em interesse pelos outros que constituem o hip hop: o rap, o grafitti e o dj.
 

A DANÇA DAS SOMBRAS NAS FOTOS DE WAGNER CELESTINO E A DIGNIDADE PRETA



Quando fez as fotos do 1° Encontro de Break de São Paulo, com uma câmera emprestada e um filme P&B de 36 poses, Celestino já acumulava certa experiência no registro de atividades sociais e culturais da comunidade negra paulistana, especialmente os desfiles de carnaval, que na época eram realizados na Av. Tiradentes. Com especial interesse em documentar apresentações musicais de artistas negros – constam em seu portfólio retratos de nomes como Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Jorge Benjor, Paulo Moura, Egberto Gismonti, John Lee Hooker, Peter Tosh, Baden Powell, Luiz Eça, Alaíde Costa, Itamar Assumpção – o hip hop, por isso, nada mais foi do que uma continuidade dessa predileção de Celestino em construir uma memória visual negra.




Ao mesmo tempo também é possível afirmarmos que o hip hop surgiu por acaso na vida do fotógrafo Wagner Celestino (1952), e despertou o seu interesse pelo mesmo motivo que encantou e seduziu outras milhares de pessoas no país: “O hip hop é uma expressão artística dos jovens das periferias de São Paulo, e mesmo tendo sido um movimento importado de fora, ele sempre foi a voz da periferia, as letras, as danças, enfim, a voz do jovem pobre, trabalhador… e isso me chamou muito atenção”, recorda-se.




Conhecido pela potente série fotográfica A Velha Guarda do Samba Paulista, Celestino começou a fotografar em 1977. As imagens deste ensaio, pela primeira vez reunidas em conjunto, foram produzidas de maneira espontânea e com poucas expectativas pelo então jovem fotógrafo. Porém, não sem o olhar generoso e atento que acompanharia toda a sua carreira. “Essas fotos são uma forma de militância, de resistência. Na época eu não tinha muito essa noção. Eu mesmo bancava os filmes, fazia mais pela nossa causa”.




O sol duro e as sombras que se formavam com seu brilho foram manipuladas por Celestino, que aproveitou o cenário para iluminar o semblante juvenil dos participantes do encontro. Sempre altivos, destacam-se também os trajes e movimentos banhados pela luz em constante diálogo com as sombras que se formavam. O que era uma simples documentação ganhou contornos estéticos de pura plástica. Uma memória viva, que hoje temos o privilégio de ver.


“Eu sempre gostei de fotografar música, e me lembro que na época esse evento me chamou a atenção. Muito provavelmente eu fiquei sabendo sobre o encontro através do rádio. Não foi nenhum trabalho encomendado. Foi mesmo um interesse em fazer um registro da nossa cultura. (…) Era um dia de sol, um dia muito bonito. E na Sé estava um ambiente legal, a maioria jovens da periferia, entre 15 a 25 anos. Eu acredito que estavam lá entorno de 2 mil pessoas”, recorda-se com carinho.
 

PRIMEIRO ENCONTRO DE BREAK DE SP: EU FUI!





Entre as cerca de 2 mil pessoas que acompanhavam o 1° Encontro de Break de São Paulo, estava o menino Charles Silva Cavate, o Charles da Zona Leste, como era conhecido, a época com 14 anos.
 

Me lembro que este encontro ocorreu num dia ensolarado. Havia um romantismo da nossa parte, éramos muito envolvidos com a dança. Me recordo que estava bastante ansioso para vivenciar este dia. Era uma coisa muito nova. Era quase uma revolução. As pessoas passavam e paravam para ver o que estava acontecendo”.




Morador da Vila Maria, Charles já dançava funk desde o início dos anos 1980, quando o break entrou na sua vida, em meados de 1983, por meio de algumas raras aparições do gênero na TV. “Na época havia vários grupos. A gente se conhecia na rua e formávamos os grupos. Naquele momento, em 1984, eu não tinha um grupo. Mas nos costumávamos nos juntar e dar nomes aleatórios a esses grupos. Eu participava mais como convidado do Funk Cia”.




O Funk e Cia., liderado por Nelson Triunfo, e o Eletric Boggie, foram os primeiros grupos que Charles conheceu. “Me lembro que fomos ver o Eletric Boogie próximo ao Pq. Ibirapuera, em uma casa noturna, e vimos pela primeira vez um cara dançando break ao vivo. Era um cara dos EUA, com uns passos diferentes. Era a efervescência do começo do break em São Paulo”.










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