Lançado em 10 de novembro de 2016, o livro 1976: Movimento Black Rio, dos jornalistas Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Otávio Sabadelhe, celebra os quarenta anos da manchete de Lena Frias, Black Rio: o orgulho (importado) de ser negro no Brasil, publicada em 17 de julho de 1976 no Caderno B do Jornal do Brasil. Em 28 reportagens, os autores recorrem a entrevistas e material previamente publicado para contar a história da cultura de bailes que, alimentados por soul, funk e disco afro-norte-americanos, espalharam-se pela Zona Norte carioca nos anos 1970, bem como a história do conjunto das apropriações desses gêneros por Tim Maia, Toni Tornado, Hyldon, Carlos Dafé, Cassiano, Gerson King Combo, Dom Salvador e Abolição, União Black, e Banda Black Rio. O livro tenciona constituir “uma contribuição à construção discursiva de uma memória social positiva da população negra brasileira” e oferece elementos para um trabalho necessário de revisão historiográfica que transcende o âmbito do tema tratado, apesar de erros fatuais que poderiam ter sido corrigidos por cruzamento de dados.
Escrito pelos jornalistas Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Otávio Sabadelhe, coautor de Memória afetiva do botequim carioca (2015), o livro 1976: Movimento Black Rio foi lançado em 10 de novembro de 2016, aos quarenta anos da manchete de Lena Frias para o Jornal do Brasil. Segundo o Grupo Editorial Record (2016), do qual José Olympio é um selo, “a obra faz parte do projeto de mesmo nome organizado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, com patrocínio da Natura, que contará com uma série de ações de valorização do Movimento Black Rio”. Entende-se por Black Rio a cultura de bailes que, nos anos 1970, espalhou-se pela Zona Norte carioca, alimentados por soul, funk e disco afro-norte-americanos. O termo foi cunhado por Frias em 1976 para designar aquilo que alguns de seus entrevistados, entre os quais Oséas Moura dos Santos, o Mr. Funky Santos, nomeavam Soul Power.
O sucesso de coletâneas de música afro-norte-americana lançadas pelas equipes de som dos bailes — Soul Grand Prix, Dynamic Soul e Black Power — somou-se ao sucesso fonográfico de Tim Maia para abrir as portas da indústria a uma geração de músicos negros que, na esteira do samba-jazz, da bossa-nova, do twist e do iê-iê-iê, exploraram musicalidades afro-pan-americanas com referência ao soul, ao funk, à disco e ao jazz. Assim, a expressão Black Rio passou a encampar o conjunto das apropriações destes gêneros por Tim Maia, Toni Tornado, Hyldon, Carlos Dafé, Cassiano, Gerson King Combo, Dom Salvador e Abolição, União Black, e Banda Black Rio. Até mesmo Jorge Ben e Wilson Simonal, cujas carreiras fonográficas se iniciam na primeira metade dos anos 1960, bem como o João Donato de A Bad Donato (1970), o Gilberto Gil de Refavela (1977), o Caetano Veloso de Bicho Baile Show (1977–1978), dentre outros, seriam eventualmente associados ao Black Rio. A participação de artistas do soul-funk brasileiro nos bailes teve contudo caráter acessório. Estes se prolongariam pelos anos 1980 sob o nome bailes funk, fixados em gravações importadas, com repertórios sempre atualizados (electrofunk, electro, house, Miami bass, Latin freestyle), e terminariam por gerar uma música própria: o funk carioca.
Os bailes de subúrbio foram objeto dos trabalhos de Hermano Vianna (1988: 19–34), Michael Hanchard (1994: 111–119), Claudia Assef (2003: 35–51), Silvio Essinger (2005: 15–48), Sonia Giacomini (2006: 189–256) e Paulina Alberto (2009); a música soul brasileira, dos de Bryan McCann (2002), Zuza Homem de Mello (2003: 367–390), José Roberto Zan (2005), e Sean Marquand e Sérgio Babo (2006). Allen Thayer (2006) abordou ambos os temas. O uso anacrônico do termo soul para a produção musical dos anos 1970 no Brasil explica-se pelo fato de, em 1969, a revista Billboard ter mudado o nome da parada de música afro-norte-americana, de rhythm‘n’blues, para soul, designação mantida até 1982 (BRACKETT, 2009: 66). Por outro lado, a emergência do funk carioca no final dos anos 1980 e a necessidade de diferenciar entre “o verdadeiro funk” e o primeiro gênero brasileiro de música eletrônica dançante contribuíram para a manutenção da palavra soul enquanto designação da vertente não eletrônica do soul-funk brasileiro.
O livro de Sabadelhe e Peixoto é a primeira monografia publicada sobre o assunto. Além de uma apresentação por Peixoto e de uma introdução por Sabadelhe, ele consiste em 28 reportagens[1] seguidas por considerações finais de Carlos Alberto Medeiros, um posfácio de Ana Maria Bahiana, e bibliografia. Os autores entrevistaram Dom Filó, Toni Tornado, Roberto Menescal, Zeca Marques, Leandro Petersen, Zezé Motta, o DJ Paulão (da equipe Black Power), Carlos Alberto Medeiros, Macau, Nei Lopes, William Magalhães, Mamão, Alcione Pinto Magalhães, Jamil Joanes, André Midani, Hyldon, Tony Bizarro, Sandra de Sá, Ed Motta, Fernanda Abreu, Pee Wee Ellis e BNegão. Um conjunto de citações cuja fonte não é especificada possivelmente provém de depoimentos de Marcos Romão (62–63), do DJ Paulinho da equipe Black Power (67), de Sir Dema (68, 74–75), de Marcelo Gularte (72), de Paulo Cézar Caju (79–80), do DJ Jailson da equipe Jet Black (81–82), de Altay Veloso (148–149), de Jorjão Barreto (156), de Nasca (183–184), do DJ Corello (189) e do DJ Marlboro (195). Excertos do depoimento de Filó conduzem a narrativa, em alternância com outras falas, trechos da literatura e amostras do jornalismo da época.
Nas palavras dos autores, o livro descarrega “uma torrente de relatos” (219). Faltam-lhe porém verificação e cruzamento de dados. O Black Rio teria inspirado o samba-jazz (21), que lhe é anterior (LOPES, 2006). O discotecário Ademir Lemos teria citado “uma renda que um jogo de Flamengo e Vasco não atingia nos domingos do Maracanã” (24), quando efetivamente citou “uma renda que um jogo, se não tiver Vasco ou Flamengo, não atinge” (FRIAS, 1976: 1). A música Heartbeat, do grupo War (ESSINGER, 2005: 34), recebe o nome de Heartbreak (64). O livro de Hanchard (1994) é creditado a McCann (104), de cujo artigo (2002: 35) provém a citação (105) atribuída ao primeiro. A aliança entre o soul e o samba de raiz é dada por “jamais revelada” (116), embora Essinger a tenha exposto em 2005 (40–42). The Platters seria um grupo “da gravadora Motown” (126), pela qual jamais passaram[2]. Dois álbuns de Luiz Melodia, um de 1978, outro de 1980, seriam balões “de ensaio para a concepção da linha sonora que iria balizar o disco Maria fumaça” (169), de 1977. Gerson King Combo teria recebido um telegrama de James Brown (170), um engodo que Essinger (2005: 39) revelou há onze anos. A origem do soul da Filadélfia é localizada na “fundação [em 1971] da gravadora Philadelphia International Records” (186–187), ainda que Kenny Gamble e Leon Huff tenham iniciado seus trabalhos em 1965 (LAWRENCE, 2004: 117). The Sugarhill Gang seria um “grupo de Nova Iorque” (194), embora todos os seus integrantes e o selo que os gravava estivessem sediados em Englewood, no estado de New Jersey (KATZ, 2012: 77–78). O subgênero de funk carioca conhecido por putaria é rotulado de proibidão (194). Breaks seriam “trechos ritmados de determinada faixa, inserida em outra música, por meio de mixagens” (195), quando constituem elementos básicos de construção da música hip-hop (KATZ, 2012: 14. ROSE, 1994: 73–74). A criação da “estrutura musical do hip-hop” seria resultado de “beats eletrônicos da máquina de ritmos programável Roland TR-808” e do “advento dos samplers” (197), dois recursos que só se tornaram disponíveis em 1980, sete anos após a fundação da cultura hip-hop (KATZ, 2012: 17–19). Muita coisa poderia ter sido corrigida pela revisão: “latente” (27) por “patente”; “cujo os” (74) por “cujos”; “Blood, Sweet and Tears” (149) por “Blood, Sweat and Tears”; “flauta em baixo” (153) por “flauta baixo”; “o melô” (194) por “a melô”. Por fim, as expressões “base endiabrada” (120), “petardo disco-funk groovadíssimo” (177) e “outro petardo” (197) tomam o lugar de descrições musicalmente relevantes.
Peixoto afirma em sua apresentação que o livro “quer ser uma contribuição à construção discursiva de uma memória social positiva da população negra brasileira” (16). Os autores se perguntam: “quando ou como o Movimento Black Rio teria sucumbido ao espetáculo que se criou em torno dele?” (219). Ao apresentá-lo no papel de precursor das atuais políticas de identidade, sob os auspícios do mesmo Estado que hoje sujeita todas as atividades recreativas nas favelas cariocas ao arbítrio da polícia ou das Forças Armadas, eles não deixam de participar desse espetáculo. É lícito exclamar-se: “menos ‘política identitária’, menos ‘empoderamento’, menos ‘lugar de fala’ e mais luta de classes!”[3]
Por outro lado, ao inserir os bailes black, a música soul, os bailes funk e o funk carioca no âmbito transnacional das manifestações da diáspora africana, ambos prestam contribuição ao combate contra o racismo estrutural da historiografia musical brasileira, onde, por exemplo, Mr. Funky Santos ocupa posição ambígua. Ao mesmo tempo que se credita ao radialista e DJ (branco) Big Boy ter começado tudo em Botafogo, atribui-se a Moura dos Santos o início dos Bailes Black, no extinto Astória Futebol Clube4, no bairro do Catumbi (ESSINGER, 2005: 19). Organizador, desde 1972, das Noites do Shaft, no Renascença Clube, no Andaraí, Dom Filó afirma: